Como dizia Hilda Hilst (1930 – 2004), é uma necessidade tão grande que se tem de se espelhar em alguma coisa, de não se sentir muito isolada, porque desde menina eu me sentia sempre alguma coisa diferente dos outros; e então você reescreve o mundo, apenas pelo seu olhar.

Colin Wilson (1931 – 2013), autor do livro The Outsider (1956), dizia que há muitas coisas que podem matar o espírito de uma pessoa: a mesquinharia, a estupidez, a futilidade, a trivialidade, entre outras camadas complexas. Um impulso. Uma vontade. Vamos chamar de aptidão. Um diálogo. Um espelho. Você. Uma caricatura quase perfeita: um Diabo. Uma Deusa. Você. Um livro, de repente, é revivido.

Liev Tolstói (1828 – 1910) em A morte de Ivan Ilitch (1895) pestanejou: “Eu não existirei mais, então o que será? Não será nada. Então onde eu estarei quando não existir mais? Será mesmo a morte? Não, não quero.” Quero permanecer em busca do Inominável. Com ele, sentirá umas dores perto da anca, sentir-se falecer, enquanto a pessoa que você convivia toda uma vida planeja ir à opera – a vida é que a chama. Enquanto você é Ivan (ou Mariana, por aqui). O que importa o rosto, se a palavra te circulará da mesma maneira, acolá? Um livro. Uma escrita. O diário infantil. A carta extraviada. Um bilhete escolar. Nós falávamos de debilidade por um título sensitivo, ainda sobre a coragem, escrever: courage, em inglês, do latim “coraticum”, derivado de “cordis”, coração.

A escrita, em seu âmago, talvez seja apenas agir à bravura de um ser que não se esquiva, mas, ainda sim, é vulnerável ao seu Tempo. Talvez seja percorrer as origens das montanhas, por perto dos dinossauros, remontar os signos das cavernas – antes de que barro, junco, papiro e papel viessem chafurdar essas livrarias do século XXI. Ao mundo de guerras e de amores, de fato nós evoluímos e retrocedemos, facilmente limitados à brutalidade: será dessa controvérsia, de oposições, que nasce em nós a necessidade de fazer livros de ficção? Um conto. Um poema. Um romance. Uma crônica. Um ensaio. Uma cena; a Literatura de luvas e de chapéu te pisca, de pernas cruzadas: você a circula nas páginas, sobre qualquer capa. Se convida. Sabe que é melhor assim. A imaginação registrada. A existência premiada. O insulto revelado. A comparação: espelho que se toca, e atravessa o mesmo reflexo, entre mim e você há certas estradas que desembocam ao mar da Memória.

Mesmo que as dores na anca te repuxem o estômago, como ocorrera em Ivan. Ler o que poderia ter sido, e observar o que foi, na mesma medida. Sensação. Sentir-se. Ver as formigas maiores do que a gente, feito o conto “Herbarium” de Lygia Fagundes Telles (1918 – 2022), quando a considerada dama da literatura brasileira narraria as peregrinações de uma jovem em busca de plantas para a coleção de um primo botânico: há o requinte da vida primitiva, natural, de repente ela é sacudida pela paixão. O professor e ensaísta Silviano Santiago afirmou que "uma definição curta e sucinta dos contos de Lygia dirá que a característica mais saliente deles é a dificuldade que têm os seres humanos de estabelecer laços".

Todos temos dificuldades, seria então a escrita uma facilidade? Se enlaçar nas palavras seria alcançar as emoções que nos desenvolvem enquanto humanoides mais satisfeitos? Ainda, “a mão é segura e sabe sugerir a história profunda sob a história aparente” , como disse Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987) sobre Lygia em Antes do Baile Verde (1970). Ainda somos as mãos das cavernas madalenianas das marés atlânticas. A escalar a palavra pela boca, de uma só vez, por outra vez, débeis e futurísticos.

Atravesseramos, novamente, o dilúvio, o desejo, a devoção: para ser.