A uvada é um doce tradicional passado de geração em geração, ao longo de, pelo menos, dois mil anos. Em Portugal, é um doce popular sobretudo na região do Oeste, uma sub-região situada na região Centro do país.

Este doce tem por base o arrobe (mosto de uva concentrado), ao qual se adiciona fruta da época (maça, pera, pêssego ou melão, entre outros) em partes iguais. Geralmente usa-se maça (fruto do género Malus, mais largo que alto, de estrutura arredondada) e/ou pêro (variedade de maça, igualmente do género Malus, mais alto que largo, de estrutura mais alongada). Notar que ‘pêro’ é uma locução própria, estremenha (da zona da Estremadura portuguesa), usada sobretudo para conferir distinção anatómica entre as variedades.

Entre as mais usadas estão Azeda, Malápio e Repinau (maças), e/ou Focinho de coelho e Ferro (pêros). No entanto há receitas onde podem entrar vegetais (abóbora-menina), tubérculos (batata-doce) e especiarias (canela e cravinho). No caso da canela, esta pode ser em pau, durante a cozedura, e/ou em pó, no final.

O arrobe – base da uvada

Em «Memória sobre os processos de vinificação empregados nos principais centros vinhateiros do continente do reino», da autoria de António Augusto Aguiar, João Ignácio Ferreira Lapa e Visconde de Villa Maior, Imprensa Nacional, 1867, diz-se que «o arroubamento reduz-se a adubar o mosto, antes de fermentar, com o arrobe de uma parte da própria uva. Este arrobe prepara-se esbagoando uma porção de uva; enchem-se algumas caldeiras de cobre de bagos e a lume brando, mexendo-se constantemente deixam-se converter em massa de arrobe.»

Apesar do excerto anterior provir duma obra do último quartel do século XIX, a origem do arrobe remonta (tanto quanto nos foi possível verificar) à época romana. Na obra De Re rustica, Columela (Gades, Bética, 4 d.C. – Tarento, c. 70 d.C.), descreveu o fabrico de mostos cozidos, reduzidos de 100% a 50% (Sapa) e de 100% a 33% (Defrutum). Mais tarde, Paladio (séc. IV-V d.C.) e Isidoro de Sevilha (Cartagena, c. 560 d.C. – Sevilha, 636 d.C.) descreveram um mosto reduzido de 100% a 66%, o Caroenum.

Àquela época, estas três variantes eram usadas para fortalecer vinhos com pouco açúcar, o que permitia a obtenção de vinhos com maior grau alcoólico, logo, com maior capacidade de conservação. Tais variantes eram ainda usadas para conferir gosto doce a vários preparos culinários, bem como para fins terapêuticos

Mas, para além dos romanos, também os árabes faziam uso de mostos de uva. Apesar das normas do Alcorão privarem o uso de bebidas fermentadas, os árabes que viviam na Hispânia não se privavam de bons mostos, ainda que se tenham verificado alguns movimentos ortodoxos (de tipo fundamentalista) contra a cultura da vinha. No entanto, foi tolerado o al-rurub, um sumo feito à base de bagos de uva e outra(s) fruta(s), que depois de fervido adquiria consistência de xarope, algo muito próximo do atual arrope feito em Espanha, e, pela mesma via, do arrobe (neste caso, o m.q. uvada) em Portugal.

Apesar do arrobe ser produzido um pouco por todo o país (Portugal), o seu fabrico está associado às regiões vitivinícolas, onde o Oeste é rei! Aqui, nesta região é usado para cobrir as famosas papas de milho, um doce de colher, por vezes de fatia que, apesar de raro, ainda hoje é feito em algumas freguesias do concelho da Lourinhã, na extremidade noroeste do distrito de Lisboa.

A confeção da uvada

Começa-se… Bem, nos tempos que correm talvez seja melhor utilizar o pretérito imperfeito do indicativo do verbo. Sim, ‘começava-se’ com a apanha da uva, na época da vindima, nessa época de colheita entre finais de agosto e, principalmente, durante o mês de setembro.

Antigamente os recursos eram bastante mais escassos do que são hoje, e a fome, essa, era muita! E, como diz o provérbio — «a necessidade aguça o engenho». Como tal, as pessoas apanhavam rabiscos, isto é, os cachos que sobravam, que ficavam presos às cepas vindimadas. Esses rabiscos eram vistos como um recurso, dir-se-ia hoje sustentável, capaz de saciar as gentes com menos posses. Com eles faziam uvada noite adentro, já depois da jorna, do dia de trabalho.

Geralmente a uvada era feita em plena rua, ou no quintal, nesse espaço universal confinado ao convívio, onde sobre uma trempe de ferro e lenha em lume vivo assentava um tacho de arame (geralmente de latão ou cobre). No entanto, segundo diversos relatos, também se fazia uvada no final das vindimas, em casa do patrão.

De seguida, procedia-se ao esmagamento e extração do mosto. Com este confecionava-se o arrobe. Para tal, escumava-se o mosto fervido, por forma a eliminar a espuma e outros resíduos provenientes dos pedúnculos e folhas secas da planta.

A segunda etapa consistia na adição das frutas cortadas grosseiramente e na sua cozedura muito lenta, até atingir o ponto estrada (cerca de 110º C), que é o ponto de açúcar ideal para doce de fruta(s). Assim obtinha-se uma espécie de marmelada de uva, de cor escura, de consistência caramelizada. De acordo com cientistas de alimentos que estudaram as características organoléticas da uvada, esta cor escura traduz-se em teores elevados de 5-hidroximetilfurfural, um composto orgânico resultante da transformação dos açúcares.

Algumas conclusões

Por ser um doce de carácter lento, fica caro devido ao tempo que leva a cozer (alto consumo de energia), e pelo vinho em mosto que, apesar de ser muito ao princípio (supúnhamos 30 litros), depois de reduzido rende apenas 7,5 L (no caso duma redução a 1/4) ou 10 L (se reduzido a 1/3). Talvez por isso pouca gente o faça, e seja um doce em rumo à extinção.

Nos últimos anos têm sido disponibilizadas algumas marcas no mercado português, mas sem, contudo, captar uma grande atenção por parte do consumidor. Num tempo em que se fala tanto de dieta alimentar equilibrada, de saúde, de clean labels, em paralelo com economia verde, circular e sustentabilidade, não faz sentido não haver no mercado nacional um espaço para este produto dotado de qualidades nutricionais excecionais; afinal de contas estamos diante de um doce feito sem adição de açúcar.

De modo a suscitar o devido interesse poder-se-ia aplicar estratégias de divulgação usadas anteriormente no vin-cuit, por exemplo, um produto em tudo semelhante à uvada, bastante usado em doçaria, como no caso da «tarte au vin cuit» ou da «moutarde de Bénichon», em França e Suíça.

Em parte, o mérito da sua divulgação deveu-se ao serviço (diga-se, pro bono) prestado por muitos cozinheiros destas regiões da Europa Ocidental, que exultando suas características organoléticas e demonstrando suas possibilidades tiveram um papel preponderante nas escolhas dos consumidores, influenciando-os através do seu conhecimento.

Notas

Alarte, V. (1818). Agricultura das vinhas: & tudo o que pertence a ellas atè perfeito recolhimento do vinho, e relação das suas virtudes, e da cepa, vides, folhas, e borras. Impressão Régia, Lisboa.
Caldeira, I., & Belchior, P. (1995). Recuperação de um doce tradicional de uva e maça-uvada. Factores tecnológicos e outros elementos para a sua caracterização físico-química e sensorial. Ciência e Técnica Vitivinícola, 12(1), 35-58.
Caldeira, I., Moreira, S., Alves, C. (2006). Estudos de optimização e diversificação da “uvada”. Ciência e Técnica Vitivinícola, 21(2), 75-98.
Confraria da Gastronomia do Ribatejo, Vol. I (2018). Carta Gastronómica da Lezíria do Tejo, Caminho das Palavras.
Martín, A. A. (2017). O saturnismo e a queda do império romano. Heródoto, Unifesp, Guarulhos, 2(2), 460-471.