Narrar uma história autêntica por meio da comida é uma missão muito complexa. Traduzir em uma refeição as vivências e os sentimentos de uma pessoa demanda muito estudo, aprimoramento do paladar e criatividade. Cada sabor, cada textura e cada detalhe compõem um universo singular buscando resgatar, em uma mordida, uma memória única.
Na mídia, frequentemente testemunhamos situações como no filme Ratatouille (Disney, 2007), quando o crítico gastronômico Anton Ego, em um momento decisivo avaliando o prato servido pelo ratinho Remy, fica surpreso e encantado com os sabores e aromas, despertando uma linda e emocionante memória do personagem. Ao final, o avaliador se rende ao talento do cozinheiro, investindo em um novo restaurante e sacrificando sua carreira em prol de uma vida mais plena.
Contudo, transmitir essa carga emocional por meio de uma refeição é muito desafiador. Numa vida acelerada, repleta de obrigações, comemos rapidamente, sempre atrasados para algum compromisso. Com prazos apertados e uma constante avalanche de desafios, a comida se torna apenas uma fonte de energia. Frequentemente, mal reparamos no que comemos ou sequer lembramos do almoço do dia anterior. No mundo atual, o ato de comer tornou-se banal e sem significado.
Outra prática em extinção é a arte de cozinhar, pois a tecnologia nos presenteou com milhões de aplicativos que facilitam nosso cotidiano. Somos bombardeados por propagandas, promoções e outras facilidades, com acesso imediato a todo tipo de comida por meio das redes sociais, aplicativos e jogos online, tudo a distância de um clique. Dispositivos modernos, como fritadeiras elétricas sem óleo e robôs de cozinha, nos distanciam do contato direto com os alimentos. Comprar, cortar, cozinhar - momentos fundamentais em qualquer cultura - estão sendo esquecidos, privando as novas gerações de memórias que poderiam ser eternizadas.
É crucial compreender a necessidade de resgatar e valorizar os momentos à mesa. Tanto na cultura brasileira quanto em outras, a cozinha desempenha um papel histórico enraizado na essência humana. A descoberta do fogo e a habilidade de produzir alimentos diretamente do solo ou manejar animais nos trouxeram à era moderna. A comida acompanha nossa evolução, mantendo-se como um fator crucial na promoção da união. É um aspecto muito importante. Poder se relacionar e aproveitar a companhia de pessoas queridas durante uma refeição é extremamente prazeroso e cria momentos únicos.
Atualmente, poucas famílias mantêm a tradição de sentar e comer todos juntos à mesa. No entanto, foi este costume que me aproximou dos meus familiares; foi por meio de várias noites de pizza que estreitei os laços de amizade com meus sobrinhos. Recordo-me das noites de churrascos, repletas de boa companhia e cerveja, ao lado de amigos e familiares. A gastronomia tem esse poder de reviver e gerar sentimentos; reconectar-se a essas emoções é entender uma parte de quem somos e perceber que nunca estaremos sozinhos, apenas distantes. Podemos comparar isso ao poema “O último Fragmento” de Raymond Carver: “E você conseguiu o que você queria desta vida, valeu a pena? Eu consegui. E o que você queria? Poder ser amado, poder me sentir amado na terra.” É uma conversa simples, mas de imensa profundidade. Se tornarmos a comida o ponto central da história, ela significa que o ato de cozinhar é ‘…poder ter amado, poder se sentir amado na Terra’. Quantas vezes não sentiu um cheiro ou sabor que imediatamente traz à lembrança de alguém querido, seja uma avó, uma mãe, pai ou amigos? Precisamos estar abertos a essas experiências, aproveitar os pequenos momentos junto às pessoas que amamos; a comida é uma forma de preservar e resgatar essas recordações.