Existe uma relação forte, em certa medida, íntima, entre aquilo que se come e a biodiversidade, também conhecida por diversidade biológica.
A biodiversidade é um termo/conceito que surge pela primeira vez em 1980 graças à inquietude e ação de determinados cientistas. Estes, estavam essencialmente preocupados com a destruição do meio natural e com o consequente desaparecimento das espécies, mas também com a necessidade de levar a sociedade a tomar medidas urgentes no sentido de proteger o património natural. Mas só em 1992 é que o termo foi finalmente consagrado, isto na Conferência das Nações Unidas para o Ambiente e Desenvolvimento.
Dum modo geral, a biodiversidade refere-se à variedade dos organismos de todas as origens, às suas relações complexas, sua relação com o meio-ambiente, bem como à diversidade genética dentro das populações, e espécies. Atualmente divide-se em três níveis: nível genético, nível das espécies e nível dos ecossistemas.
Pode-se dizer que a biodiversidade é responsável pela manutenção da estabilidade dos ecossistemas. Como todos nós sabemos, e ao mesmo tempo parece que não sabemos, é a biodiversidade que assegura as condições necessárias à existência do Homem através de ar puro, água potável e recursos biológicos, estes englobando os recursos genéticos, os organismos, as populações, ou qualquer outro tipo de componente biótico dos ecossistemas de valor ou utilidade atual ou potencial para a humanidade.
Os recursos biológicos englobam aquilo que se pode definir por biodiversidade alimentar. Ou seja, podemos definir tal conceito como ‘a diversidade de plantas, animais e outros organismos usados para alimentação, cobrindo os recursos genéticos dentro de espécies, entre espécies, e fornecida pelos ecossistemas’. Há uma frase curiosa de uma antropóloga que retrata isso dum outro ponto de vista: ‘os seres humanos são capazes de comer mais ou menos tudo o que não os consegue comer antes’.
Esta biodiversidade de que falamos é resultado de uma seleção natural, que corresponde a organismos selecionados pela Natureza (sem qualquer intervenção do Homem), e artificial; os organismos selecionados e melhorados geneticamente pelo Homem através do processo de domesticação.
A natureza é abundante em sabores, e cada um de nós é livre de escolher o que mais lhe apraz. É importante dizer que ‘a biodiversidade não está somente lá fora, nas florestas tropicais, nos oceanos, nos pântanos, ela também está aqui, nos nossos pratos’. Podemos dizer que, o que está no prato é um ‘bio-sabor’, uma espécie capaz de nos alimentar, que corresponde a um sabor único, apenas passível de entendimento através da experiência. Na verdade, só conhece quem experiencia.
Quando vamos a um restaurante, escolhe-se o que se quer comer a partir de uma lista que contempla diversas opções alimentares. Na verdade, quando entramos no hipermercado estamos diante de um museu de história natural. Quando comemos, acontece o mesmo. Ora, quando entramos num restaurante, também aí temos acesso a um leque alargado de histórias: história natural, história social e história científica. Na verdade, cada prato é muito mais do que um simples prato. Cada prato contempla uma história, várias histórias, e a estória do que queremos ver, cheirar, conhecer, aprender. E isso depende inteiramente de nós.
De seguida proponho uma viagem pela história natural de um prato tradicional português. Um prato especial: o arroz de lampreia. Através desse prato, podemos questionar as coisas.
Geralmente, o arroz de lampreia leva, claro está, arroz e lampreia, mas além destes outros ingredientes: azeite, alho, cebola, louro, salsa, pimenta, vinagre e vinho tinto. No conjunto temos 1 elemento do Reino Animalia (lampreia); 5 elementos do Reino Plantae (arroz, alho, louro, salsa, cebola e pimenta) e 3 condimentos feitos com recursos obtidos a partir do Reino Plantae, nomeadamente, videira e oliveira (azeite, vinho tinto e vinagre).
O somatório não-aleatório de todos esses ingredientes resulta na receita que conhecemos como arroz de lampreia. Cada um dos 9 elementos tem uma finalidade. Para além disso, a nível taxonómico o nosso prato é constituído por 8 famílias de plantas: Poaceae (arroz), Vitaceae (videira), Amaryllidaceae (alho), Lauraceae (loureiro), Apiaceae (salsa), Amaryllidaceae (cebola), Oleaceae (oliveira), e Piperaceae (pimenta), todas elas pertencentes à divisão das magnoliófitas, e por 2 classes; as monocotiledóneas (alho e cebola) e as dicotiledóneas (as restantes), diferenciando-se em algumas características, tais como o número de cotilédones.
Mas voltemos à lampreia (Petromyzon marinus). As lampreias, juntamente com as mixinas (peixes marinhos, de águas frias, que não apresentam mandíbulas), são os únicos representantes da superclasse Agnatha (sem mandíbulas). Os Agnatha correspondem ao registo fóssil mais antigo em termos de organismos aparentados com os peixes – o primeiro fóssil reconhecido de lampreia tem cerca de 360 milhões de anos, sendo a sua morfologia geral bastante semelhante às lampreias atuais – daí dizer-se muitas vezes que a lampreia é um ‘fóssil vivo’, devido à sua capacidade de se adaptar e persistir ao longo de milhares de anos.
Uma das razões por que a lampreia suscita curiosidade, e ao mesmo tempo repugnância, é devido à sua icónica morfologia, em particular a sua boca semelhante a uma ventosa circular, e pelo facto de se saber que é um ectoparasita, fixando-se no exterior do corpo do hospedeiro (peixes e cetáceos), cuja pele perfuram com os dentes suctórios, alimentando-se de sangue. Esta também é uma forma de se deslocarem no oceano – a lampreia-marinha é aquilo que se designa por uma espécie anádroma, ou seja, o seu ciclo de vida está dividido em duas fases distintas; uma fase larvar e microfágica (ingestão de pequenas partículas), cuja principal característica é ser desprovida de olhos e de dentição, sendo denominada nessa fase de amocete, esta em ambiente dulçaquícola, de água-doce, e uma fase adulta em ambiente marinho, fase que coincide com a alimentação hematófaga (de sangue), a qual dura cerca de 2 anos, e durante a qual retornam ao ambiente onde nasceram para fins reprodutivos.
Já vimos que o arroz de lampreia pode levar-nos ao mundo da história natural. Mas também levanta questões de outro tipo: por que se faz como se faz? Por que se usa o que se usa? Geralmente, os pratos de lampreia começam por um refogado (fritura). Quando falamos de refogado vem-nos de imediato à ideia o azeite, o alho e a cebola. Grande parte da cozinha tradicional portuguesa usa estas duas monocotiledóneas nos refogados. Será que existe alguma explicação para isso, ou é apenas mero acaso? Num refogado usam-se vários temperos, uma vez que estabelecem sinergias entre os vários compostos existentes, ou seja, quando combinados uns com os outros adquirem novas propriedades bioativas. Devido a isso, são capazes de eliminar micro-organismos ou inibir o seu crescimento. É devido a esse princípio que é tão comum usar-se misturas em cozinha. A pungência característica do alho e da cebola deve-se aos seus compostos sulfurosos, que, no caso do alho chegam a ser cerca de trinta.
Na preparação do refogado deparamo-nos com a seguinte questão: que tipo de reações ocorre quando se pica um alho? Quando o alho é cortado, uma enzima, a alinase, que está num determinado compartimento da célula entra em contacto com a aliina, que por sua vez, está num outro. É então que ocorre uma reação e se forma alicina. É através desse processo que podemos dizer: ‘cheira a alho’.
A verdade é que o arroz de lampreia está repleto de sabores, mas também de porquês.
A partir das ideias e objetivos subjacentes ao termo biodiversidade alimentar chegamos a diversas conclusões, inferindo o seguinte:
É possível através do que se come questionar o porquê das coisas, consciencializar e informar os indivíduos sobre o papel dos alimentos;
A reflexão sobre o que comemos do ponto de vista da história natural leva-nos a refletir sobre a origem da vida e o seu sentido, sobre os ciclos de vida, acerca do nascimento e da morte;
É possível expandir os nossos horizontes alimentares, não nos confinando a uma dieta sem grandes opções alimentares, a uma dieta repetida;
É fundamental o (re)descobrimento de culturas agrícolas que estão a desaparecer ou que foram substituídas por outras e a valorização desse tipo de recursos;
Todos, sem exceção, têm o direito de saber de onde vem, o que é, e como são confecionados e produzidos os alimentos;
O ‘que se come’ é tao importante quanto o ‘onde se come’ e ‘com quem se come’;
O gosto é um bem essencial, na medida em que pode ser aprendido em qualquer idade;
Ter consciência dos sabores implica ser-se mais consciente de si e do mundo natural;
É possível através do que se come questionar o porquê das coisas;
Faz sentido reconhecer a alimentação como um processo de aprendizagem.