Fruto? Um esquife negro, nunca centro de um bucólico olhar ou de uma gula. O que é uma alfarroba? Pão de mula, com lágrimas lá dentro […]

(Leonel Neves, natural do Algarve, 1968)

Introdução

Em Portugal, a alfarroba cingiu-se sobretudo à alimentação animal, especialmente de suínos e equídeos. Ou seja, o valor comercial da alfarroba sempre foi bastante baixo. O seu consumo humano estava associado à população mais carenciada, especialmente de crianças e pobres, que as consumiam cruas, secas ao sol, fumadas ou torradas.

Durante o século XX, a cultura da alfarrobeira (Ceratonia síliqua) aumentou no país, mais precisamente na região do Algarve, surgindo agora em pomares estremes, ao invés do tradicional pomar de sequeiro algarvio, este associado à célebre tríade arbórea onde consta a figueira, a amendoeira e a oliveira, ou ainda associado às culturas de rotação em sobcoberto, em que se destacam várias leguminosas (e.g. grão-de-bico, feijão verde, favas, griséus, vulga ervilha, ou ainda culturas cerealíferas (e.g. trigo, cevada ou aveia).

Assim, para além de ser empregue em rações animais, a alfarroba via-se agora associada à indústria dos aditivos alimentares (e.g. goma de alfarroba) e outros subprodutos (e.g. farinha de alfarroba, gérmen de semente de alfarroba, polpa de alfarroba, etc.). Com isto, as exportações aumentaram, e o Algarve tornou-se uma das principais regiões produtora de alfarroba no mundo. Em 2021, a área de cultivo de alfarroba no Algarve era de cerca de 13.600 hectares, com uma produção na ordem das 30.684 toneladas. O crescente interesse pelo fruto trouxe à alfarroba o epiteto de “ouro negro” do Algarve.

Características estruturais e propriedades da goma de alfarroba

A goma de alfarroba é um aditivo alimentar (E410) pertencente à categoria dos emulsionantes, estabilizantes, espessantes e gelificantes (E400-499). Em geral, estas substâncias têm a capacidade de se ligar à água e, devido a isso, são designadas de hidrocoloides: hidro-, de água, e coloide, referente a uma substância semelhante a cola. Isto é, estas substâncias “amigas da água”, são substâncias capazes de formar dispersões muito viscosas e/ou géis.

Alguns destes biopolímeros pertencem ao grupo das galactomananas, que são heteropolissacáridos de reserva presentes no endosperma das sementes de determinadas espécies de plantas, sendo constituídas por uma cadeia principal de unidades repetidas de D-manose e respetivas cadeias laterais de resíduos únicos de D-galactose.

A goma de alfarroba, o guar (uma goma extraída a partir das sementes de Cyamopsis tetragonaloba) e, a tara (outra goma extraída das sementes de Caesalpinia spinosa), são espécies particularmente ricas em galactomananas, apresentando cada uma delas características distintas. Tal se deve à razão de D-manose/D-galactose existente em cada uma destas espécies e, ao modo como estão distribuídos os resíduos de galactose ao longo da cadeia principal de manose.

A goma de alfarroba é a que apresenta menor teor em D-galactose, entre 17 e 26%, e a goma guar, a que apresenta maior teor, nomeadamente entre 33 e 40%. Tais diferenças vão-se refletir na solubilidade de cada um dos polissacáridos.

À medida que o teor de galactose aumenta, existe um acréscimo do nível de solubilidade, uma vez que, quanto maior o número de unidades de galactose, mais difícil é a ligação entre as cadeias. Por isso se explica que, para dissolver a goma guar basta dissolvê-la em água fria, ao invés da goma de alfarroba em que é necessário proceder a aquecimento prévio, entre 80-90°C. No entanto, menor teor de galactose significa uma maior capacidade das galactomananas interagirem com outros hidrocoloides. No caso da goma de alfarroba, esta possui elevada sinergia com diferentes hidrocoloides (e.g. agar, carrageninas, goma xantana), uma vez que possui uma grande quantidade de grupos hidroxilo na sua estrutura.

Em combinação com o agar, as carrageninas e/ou a goma xantana, a goma de alfarroba forma géis estáveis. Em tais sinergias, a goma de alfarroba controla a sinérese, ou seja, a perda de água proveniente dos géis. Por exemplo, no caso da sinergia entre goma de alfarroba e carragenina kappa resultam géis elásticos e transparentes. Caso o gel fosse feito somente à base de carragenina kappa, o resultado seria bem diferente; este apresentar-se-ia muito rígido e quebradiço.

A goma de alfarroba tem imensas aplicações práticas na área da gastronomia (e.g. espumas, coulis, géis, gelados, gomas, loukoums e sopas). No contexto da indústria alimentar emprega-se em confeções várias (e.g. comida pré-cozinhada, comida para bebé, molhos variados, queijo-creme, iogurtes, gelados, sobremesas lácteas, refrigerantes, produtos de panificação, pastelaria diversa e fibras alimentares), o que revela a enorme versatilidade deste hidrocoloide.

Breve nota sobre Josep Sureda Blanes

Josep Sureda Blanes (1890-1984), foi um químico maiorquino que trabalhou com Heinrich Wieland (1877-1957), Hermann Staudinger (1881-1965) e Leopold Ružička (1887-1976), todos eles prestigiados químicos, não fossem todos eles galardoados com o Prémio Nobel da Química.

Por volta de 1930, Josep Sureda Blanes decide abandonar a investigação, tornando-se então diretor de uma empresa de transformação de alfarroba sediada na sua terra natal, mais exatamente a Indústrias Agrícolas de Mallorca S.A. (IAMSA). Entre 1933 e 1952 dirige o laboratório onde faz algumas descobertas interessantes na área da química da alfarroba. É aí que desenvolve o precursor do atual E410, de seu nome Aprestagum.

Passado alguns anos, já no início do presente século, a empresa maiorquina CAROB, S.A. adaptaria as instalações da ex-IAMSA de modo a produzir e exportar este aditivo alimentar. Deste modo, o mercado conheceria o novo aditivo PALGUM®, uma goma de alfarroba de elevada qualidade, muito mais pura que o velho Aprestagum. Este novo aditivo melhora a textura, o desempenho e a eficiência nas aplicações finais.

A farinha de alfarroba

Por outras palavras, o estatuto de ‘substituto’ nunca é desejável. Não o é para as pessoas, e também não o é para a farinha de alfarroba.

(Margarida Guerreiro in Doçaria com Alfarroba, 2002)

Em Portugal, a recolha das alfarrobas é feita entre os meses de agosto e outubro. Tradicionalmente, a sua apanha é similar à apanha da azeitona e da amêndoa. Aos homens cabe a tarefa de varejar as ramas com ajuda de canas de bambu. Por vezes, os varejadores sobem às árvores de modo a alcançar os frutos mais distantes. Estes, por sua vez, caem sobre os panos, redes ou lonas, dispostas previamente debaixo das árvores.

Geralmente são as mulheres e as crianças que realizam a operação da apanha, recolhendo os frutos para uma canastra. Após a colheita, o fruto é armazenado até ser vendido ou sofrer um processo de transformação. No caso da farinha de alfarroba, é necessário proceder a uma primeira transformação, a separação da polpa das sementes. Segue-se a secagem, a torrefação e, por fim, a moagem. O resultado é um pó castanho-escuro, esteticamente apelativo, de textura ultrafina e cheiro característico.

O seu aroma é semelhante ao cacau, e por isso, a farinha de alfarroba é utilizada como seu sucedâneo. Contudo, outras características diferenciam-nos. Desse ponto de vista, a farinha de alfarroba pode demonstrar vantagens —, é que ela apresenta um baixo teor de lípidos quando comparado com o cacau (ca. 1:23%), e a diferença é bastante significativa se se tiver em conta que os 23% correspondem a gorduras saturadas, vulgarmente apelidadas de gorduras menos boas.

Quando se pretende substituir farinha de alfarroba por cacau, há que ter em conta a proporção de açúcar. O cacau contém menor teor de açúcar do que a farinha de alfarroba. Este contém apenas 5%, enquanto a farinha de alfarroba 50%, sendo, portanto, uma diferença significativa. Isto para dizer que, durante a confeção de uma qualquer receita há que ajustar convenientemente a quantidade de açúcar. Além disso, há que adicionar um pouco mais de gordura e, uma ou duas colheres de líquido, por exemplo, álcool, leite ou sumo de fruta, visto que os compostos que fazem parte da constituição das suas fibras absorvem uma boa parte de líquido. Esta é, pois, a razão por que os bolos feitos à base de farinha de alfarroba se mantêm húmidos e macios durante um longo período de tempo.

Ainda que a farinha de alfarroba seja de baixo custo quando comparada com o cacau (facto pela qual ela é usada para reduzir o preço do produto final no fabrico de chocolates), não é caso para que seja considerada como mero substituto, por vezes mesmo como um produto de menor qualidade. Na verdade, a farinha de alfarroba é um produto com características únicas que vale a pena experimentar. Ideal para confecionar pão, bolachas, bolos, bolas de Berlim, fabrico de chocolates, recheios e barras energéticas.

Por tudo o que foi dito, por tudo aquilo que falta dizer sobre este tão valioso recurso autóctone, vale a pena dar-lhe uma oportunidade nas nossas mesas, reconhecendo nele a sua enorme mais-valia nutricional, e a sua não menos importante versatilidade.

Referências

Amador, Maria Conceição. (2002). Doçaria com alfarroba: sabores e segredos do Algarve. 1.ª ed. Faro: Litográfica do Sul. 64 pp.
Molino-Dios, Ramon (2012). De pan de pobres a sofisticado aditivo. Tecnología e innovación en torno a la industria de la algarroba: el caso balear (1930-2010). Revista de Historia Industrial, n.° 49. Año XXI.
Nussinovitch, Amos & Hirashima, M (2013). Cooking Innovations: Using Hydrocolloids for Thickening, Gelling, and Emulsification. New York: CRC Press Taylor & Francis Group. 384 pp. ISBN: 978-1-4398-7588-9.
Phillips, G. O. & Williams, P. A. (eds.) (2009). Handbook of Hydrocolloids, 2.nd Edition. Cambridge: Woodhead Publishing Limited. 948 pp. ISBN: 978-1-84569-414-2.