Não é de hoje que toda e qualquer refeição é muito mais do que um simples ato, mesmo que você não possa ver; tem algo muito mais complexo acontecendo bem debaixo do seu nariz, ali mesmo a sua frente, naquela mesa, balcão ou afins. É isso mesmo, você come, comunga, partilha e nem sequer consegue perceber toda a magnitude por trás daquela reunião, ou as vezes solidão. Quando os primeiros humanos desenvolveram os primeiros pratos, não por acaso, estes receberam a forma arredondada, o que sutilmente acaba agregando; e não dispersando, uma vez que tivessem arestas, algo que aconteceria mais tarde com os diversos estilos da modernidade.

Mesmo com o advento do prato, algumas sociedades continuaram se alimentando com as mãos, digo, sem o auxílio de talheres ( alguns ainda mantêm a prática ) pois reside ali um ato de respeito para com o alimento, é como se pedíssemos licença para apalpar aquele item, e nas mãos podermos perceber toda a textura, suculência e onipotência daquilo que em alguns instantes estaria saciando a nossa fome, e nada disso seria possível com o uso de talheres, sejam eles de metal ou não.

Comer é de fato um ato sagrado, uma das diversas formas de se conectar com o divino; tudo começa pelos olhos que miram uma profusão de cores dispostas as vezes de forma organizada e as vezes não, o que pouco importa quando o tempero é a fome; depois sentados ou não e com o nosso olfato já repleto de aromas, a nossa mente já enlouquecida se encarregou de inundar a nossa boca para receber o néctar a nossa frente, em seguida, de garfo e faca nas mãos – ou não – começa uma viagem quase que espiritual entre o prato e a boca, esta última já com as papilas gustativas em transe e de prontidão sabem bem o que está por vir, então, que comece a festa no interior…

O ser aqui que vos escreve estas singelas palavras, por exemplo, frequentemente come com as mãos, dispensando o uso dos talheres; é como uma volta ao passado, ao colo da mãe ou a casa da vó, e lá comer aquele bolinho de feijão com farinha de mandioca embebido no molho de um bom guisado; é de comer ajoelhado e aos prantos.

Quando as primeiras Naus chegaram a Pindorama, e os saqueadores na base da força impuseram os seus modos; eles trouxeram também muito mais do que se pode imaginar, as mesmas Naus estavam repletas de vinhos, azeites, vestimentas e, etc. Aqueles nativos que ali residiam, já tinham suas práticas culturais bem enraizadas e diversificadas, afinal, existe algo mais ritualístico do que sentar-se em grupo, dentro ou fora de uma Oca, e comer numa cuia o alimento preparado na folha de bananeira ? Naquele período o tacho do destino fervia dia e noite em constante ebulição; então, de tabuada nas mãos faça as contas; pegue um índio e some a um invasor, junte um escravizado e mais uma penca de influências … eis uma magnífica colcha de retalhos, a ancestralidade está posta; não, isso não é uma ode a tirania, mas é depois desse encontro nada amistoso que surgem termos como:

  • Da terra – tudo aquilo que é produzido no local
  • Do reino – tudo o que vinha da metrópole
  • Da costa – tudo o que era da África

Banana-da-terra, Pimenta-do-reino, Inhame-da-costa; essas e tantas outras iguarias sempre presentes no dia a dia das pessoas dos mais diversos níveis sociais, foi e é uma grande fonte de riqueza para todos, seja o alimento preparado nas cozinhas dos grandes palacetes ou no fogão a lenha da dona de casa, a comida quase sempre está lá, disposta a mesa. Na mesa do castelo ou na mesa de uma simples casa, quase sempre existe todo um rito que cerca o momento da refeição… entrada, prato principal e sobremesa; o “dono” da casa senta-se sempre a cabeceira da mesa, os melhores cortes de carne são para os mais velhos, são apenas alguns exemplos. Embora muitas famílias não consigam sequer fazer as três principais refeições diárias, haverá lá quase sempre uma panela e um prato ávidos por uma cerimônia alimentícia, e uma casa ávida pelo perfume dos quitutes.

Mas, vamos lançar um olhar para o magnífico Recife, terra de águas quentes e povo idem … É sabido por todos que se pode provar alguns bons pratos da culinária mundial em quase toda e qualquer esquina da Veneza Brasileira, desde uma boa Lasanha, que tem esse nome por causa da herança grega; passando por um inebriante Ceviche e o seu lento cozimento ( é para comer rezando ) e indo até uma monumental Paella, seja ela de frutos do mar ou de caça, sem dúvida alguma, tudo o que você leva a boca está recheado de história; do começo ao fim. Banhado pelo atlântico, e dono de um litoral estupendo, Pernambuco se tornou a jóia da coroa logo após a invasão portuguesa, cheio de terras férteis e de uma vocação “assucareira“, essa região ganhou rápida projeção internacional devido a esses e outros atrativos, também, numa terra onde em se plantando tudo dá, e onde uns revoltosos já se reuniram com o intuito de libertar ninguém mais ninguém menos que Napoleão Bonaparte, tinha mesmo é que chamar a atenção de tudo e de todos, vai vendo!

Por falar nessas terras, quem ainda não se encantou com uma boa Tapioca com queijo coalho e côco ralado, receita tradicionalíssima de origem indígena, ou um maravilhoso Bolo de Rolo, quitute derivado do Colchão de Noiva português, e talvez a suntuosa Feijoada Brasileira, que também tem sua origem lá na terra de Camões; não sabe o que é comer bem. Como já citado antes, todo o processo que envolve uma refeição é muito mais complexo do que se imagina, é estar conectado com os seus orixás e aquela mão negra que nunca se curvou mesmo quando confinada num terreiro, é ser parte daquela pajelança sagrada, é viver sendo único de um todo infinito que une tudo e todos sem distinção alguma.

Agora é só seguir a receita criada naquela cozinha, onde tudo o que se servia era o amor. Tome nota; azeite de dendê, um litro de paixão, uma porção de carinho, um pouco de emoção, um ramo de dedicação, e saudade a gosto. Refogue a saudade no azeite em tacho de bronze bem quente para que ela não mate o sujeito, acrescente a paixão e em seguida a emoção e a dedicação, mexa bastante até conseguir um caldo bem encorpado, feito isso coloque o carinho misturando lentamente e mexendo de baixo para cima com uma colher de pau, deixe levantar a fervura, acrescente uma pitada de sal e tampe. Sirva imediatamente, na mesa ou no balcão, só ou acompanhado, podendo ser consumido em qualquer época do ano.