França?
Pato, manteiga, croissant.
Itália?
Pizza! Molho de tomate, vinho, queijo.
Cerveja! - Alguém gritou ao fundo da sala.
Um sorriso de canto, um recuo gravitacional de cabeça e os olhos cerrados da professora, escondiam uma curiosa resposta.

Escutava os murmurinhos e risos de canto de boca, enquanto a professora de gastronomia percorria entre os corredores formados pela disposição das cadeiras e fazia provocações para ligarmos nossas memórias gustativas à um país. Lembro-me das respostas que antecedem este texto e coloquei dispostas na abertura, logo à vista de seus olhos, caro leitor.

A medida das provocações, ora para realizar uma avaliação prévia dos conhecimentos dos alunos, ora para provocar uma reflexão que estava por vim: A cor do nosso prato. Ao final, poderia dizer que trocaria o título da reflexão para: O preço do apagamento histórico do nosso prato.

Sim, a comida tem cor. Deixo às delongas de canto, precisamos desembuchar sobre as cores invisíveis nos nossos pratos e começar a resgatar a vontade de devorar o saber; curiosamente olhar para algo posto e nos perguntar de onde vem; qual sua origem; sua forma ancestral de fazer; quem descobriu isso ou aquilo; porque agora isso pertence aqui e não lá. A partir de uma licença poética, mas curiosamente condizente, me peguei lembrando de um desenho que me deleitava aos risos com meus sobrinhos, onde uma curiosa garotinha e seu irmão embarcavam em jornadas de saber épicas e curiosas; onde o princípio era o porquê e deste partia a se perguntar e aos demais: eu quero saber! E aposto que se você chegou até aqui, você também quer.

Era uma vez uma grande, majestosa e riquíssima civilização. Berço da agricultura; domínio de animais domésticos; meteorologia. Produtores de cereais; acidentalmente fabricantes do primeiro processo de fermentação da cevada. Donos da cerveja, mas não como conhecemos hoje, mas pode começar a agradecer. Avisei que íamos fazer uma reflexão sobre o que comíamos e o título é apenas para aguçar a salivação e limpar nossos paladares para os sabores que estão por vir. Podem acreditar: essa é só a primeira parte de uma deliciosa e viciante viagem. Vamos beber e comer ao longo dessa jornada.

Ao escrever, mordisquei meus lábios ao lembrar do líquido marrom dourado que tanto amo. Estilo IPA. Geladíssima. Me esqueci por um momento que iria escrever uma história. Ah, voltemos! - Cevada; civilização; rios; agricultura; fermentação… Bem, vamos à Mesopotâmia, necessariamente à Suméria. Esqueça as abadias e os frades sorridentes retratos brindando com seus canecos como se fossem detentores da criação desse líquido dourado e precioso. Aposto que você consegue materializar essa imagem típica em sua mente. Mas você conseguiria materializar um povo pardo nesta mesma situação? Se sim, parabéns! Estou contigo.

O que colocamos no copo também tem cor. Por anos digeri uma história embranquecida, destituída do contexto histórico. Ao longo da minha formação, a inquietação por saber de onde vinha o que tinha na minha mesa, calçou em mim o desejo de fazer as perguntas e buscar as fontes certas. Não poderia continuar a ser eu, uma apagadora histórica; reprodutora de tudo aqui que me empurraram guela abaixo, sem me dar o sabor da história e poder berrar aos demais as minhas descobertas.

Li artigos que sempre traziam “então os antigos gregos disseminaram a cerveja ao restante do continente”. Calma, lá. Na verdade, os antigos gregos invadiram, cravaram lutas armadas, dominaram cidades e antigos impérios e roubaram a cultura de vários povos, agregando à sua e a repetindo como se as tivessem criado. Venderam a história como sua. Por incrível que possa parecer, não costumamos nos deparar com a história que no Egito, que possui proximidade com a antiga região mesopotâmica, foi um grande polo, inclusive a nível industrial da cerveja. Não estou aqui querendo tirar mérito aos diversos estilos e melhorias que esta bebida recebeu ao longo dos séculos, mas preciso ser fiel e provocativa - assim como a professora de gastronomia- no meu dissabor e este é justamente o meu incômodo. A cervejaria mais antiga do mundo - segundo relatos- fica na Baviera, região sul da Alemanha, no continente europeu. Lá acontece anualmente Oktoberfest, pelos museus de arte e pelo ornamentado Palácio Nymphenburg. Imagine se, todos os anos, este festival resolvesse homenagear quem realmente deixou esta maravilhosa e lucrativa herança? Teríamos hoje que agradecer aos sumérios e os egípcios; estaríamos brindando aos saberes ancestrais de um povo de cor. Este artigo, também tem sua responsabilidade política- militante.

Gostaria que soubessem que eu sou a professora, que afunda a cabeça em direção ao chão, mas como uma forma reflexiva, por que eu já estive naquele lugar. Me afundo para buscar métodos e criar reflexões inquietantes. Quero me saborear com as expressões de surpresa e até brincar, enquanto caminho entre os corredores formados por cadeiras - que mais tarde serão exterminados e a sala virará um grande círculo- e quiçá cantarolar a música daquele desenho animado que contei para vocês.

Eu quero saber
Não quero dormir
O que tá acontecendo
Eu vou descobrir

Espero que você também possa descobrir o que está acontecendo, sobretudo, com nosso prato, em nossa mesa. Que este texto seja como a cevada em pleno processo de fermentação.