Sobre o fundo negro paira um astronauta com um traje espacial pressurizado. Segura um garfo e uma faca. Há comida a pairar em redor do espaço sideral. O astronauta dá sinal de querer comer.
Esta imagem chamou-me a atenção pelo facto de ser a capa duma palestra realizada durante o MAD symposium 2015, intitulada “The Future of Food is Note by Note Cooking”.
A Cozinha Nota-a-Nota
Uma breve história
Tudo começou em 1994, quando Hervé This, um físico-químico francês, e Nicholas Kurti, um físico húngaro, escreveram em conjunto um artigo para a Scientic American intitulado “Chemistry and Physics in the Kitchen”. Foi nas linhas deste precioso artigo que os princípios do novo conceito, “Cozinha Nota-a-Nota”, foram esboçados.
O criador
Quem é Hervé This? Nascido em 1955 em Suresnes, Hauts-de-Seine, é um físico-químico que trabalha no Institute National de La Recherche Agronomique, em Paris, França. A sua principal área de pesquisa científica é a ciência dos alimentos. Formado pela École Supérieure de Physique et de Chimie Industrielles de la Ville de Paris, obteve o seu Ph.D. pela Universidade de Paris, sob o título “La gastronomie moléculaire et physique”. Para além de ter conceptualizado a “Cozinha Nota-a-Nota”, cunhou outras disciplinas, nomeadamente, “Gastronomia Molecular” e, posteriormente “Cozinha Molecular”. Acima de tudo é um observador do mundo, dos estímulos sensoriais, e um fervoroso estudioso dos processos físico-químicos que ocorrem quando cozinhamos os alimentos.
Da Cozinha Molecular à Cozinha Nota-a-Nota
A importância de utilizar o método científico para compreender as propriedades dos alimentos foi reconhecido durante o século XVIII pelo célebre cientista Lavoisier. E, Hervé This, como bom discípulo, prossegue o trabalho do mestre, inventando uma forma inusitada de ‘pensar cozinha’.
Duma forma geral, pode-se dizer que é um tipo de cozinha que não utiliza tecidos vegetais, por exemplo, frutos ou legumes, nem tecidos animais, como o são a carne, os ovos, e o peixe. Em vez disso utiliza compostos puros (água, etanol, sacarose, amilopectina), ou mistura de compostos obtidos através de fracionamento de tecidos vegetais ou animais. Mas, compreenderemos melhor o conceito de “Cozinha Nota-a-Nota” à luz do contexto histórico. Para começar é necessário definir alguns termos passíveis de serem confundidos, inclusive ‘Cozinha’ e ‘Gastronomia’.
A ‘Cozinha’ é a atividade que consiste em preparar, confecionar e apresentar os alimentos na forma de iguarias. A ‘Cozinha Molecular’ é um método que faz uso de novos utensílios, ingredientes e métodos culinários, tendo sido criada no início dos anos 80 do século XX, quando houve a necessidade de introduzir na cozinha alguns utensílios/aparelhos usualmente empregues nos laboratórios de química.
Por sua vez, a ‘Gastronomia’ é o conhecimento racional de tudo o que diz respeito ao homem quando se alimenta, tal como descrito em 1852 por Jean-Anthelme Brillat Savarin no seu trabalho “A Fisiologia do Gosto”. Já a ‘Gastronomia Molecular’ é um ramo da físico-química que explora os resultados das transformações culinárias.
O conceito de ‘Cozinha Nota-a-Nota” é mais recente, tendo surgido em meados dos anos 90 do século XX. Em 1994, Hervé e Kurti escreviam: “Os produtores de vinhos e licores estão proibidos por lei de adicionar açúcar ou outros químicos por forma a melhorar o gosto dos seus produtos. Uma pequena quantidade de extrato de baunilha poderia enriquecer o gosto de uma garrafa de whisky barato. Este tipo de experiência poderia estender-se a um grande número de bebidas e comidas. Talvez nos livros de cozinha do futuro, as receitas incluam informações tais como “adicionar ao vosso caldo duas gotas de uma solução a 0,001% de benzilmercaptano em álcool puro”.
Na verdade, sempre alteramos o sabor adicionando ervas e/ou especiarias às nossas iguarias; uma forma de empacotar misturas de moléculas aromáticas. Hervé This acredita que ao adicionarmos benzilmercaptano a um caldo estamos a optar por uma boa solução do ponto de vista culinário, sendo que o composto em soluções de baixa concentração possui diferentes notas aromáticas, algumas delas bastante interessantes, (por exemplo, alho, cebola, rábano picante, hortelã ou mesmo café).
A cozinha é uma arte
É o próprio Hervé que nos diz: a cozinha é uma arte. Sendo assim, compara a cozinha com a pintura e a música. No passado, a música era feita com instrumentos de corda, de sopro, entre outros. O trompete, o violino, e o piano eram usados a solo ou combinados conforme desejado. Cada instrumento tinha o seu timbre. Com o advento da eletrónica, músicos como Pierre Schaeffer, Karleinz Stockhausen e Edgar Varèse começaram a misturar sons produzidos por dispositivos eletrónicos a partir de um repertório instrumental clássico.
Quando percebemos um som, percebemos um timbre, um passo, uma intensidade. Em cozinha, quando percebemos um sabor, percebemos uma consistência, um gosto, um odor, inclusive a intensidade do calor. A comparação é óbvia. E o equivalente culinário de um som é um composto. Em cozinha, tal como em música, a escolha das unidades sensoriais permite-nos uma liberdade ilimitada. Pode-se produzir qualquer som, qualquer música ou gosto, qualquer comida. A construção duma iguaria a partir de compostos, nota-a-nota, é complexo, pois o cozinheiro necessita de projetar formas, cores, sabores, odores, temperaturas, texturas, os mais variados elementos. Tudo tem de ser construído.
Das Receitas
A primeira receita nota-a-nota
A primeira receita inteiramente nota-a-nota teve por título “Chick Corea”; nome de um famoso músico estaduniense de jazz fusion, tendo sido desenvolvida a quatro mãos: Hervé This-Pierre Gagnaire. Foi apresentada pela primeira vez no dia 24 de abril de 2009 em Hong Kong. A receita consistia em pérolas de maça com opalines e granizado de limão.
Bife nota-a-nota
Como se faz um bife nota-a-nota? Segundo Hervé é bastante fácil. A clara de ovo tem 10% de proteína, e quando se tem essa proteína sob a forma de albumina, acrescenta-se água. Como a carne tem 60% de proteínas, se se adicionar seis colheres de albumina e quatro colheres de água obtemos um bife. Fácil, não é? Depois, basta juntar-lhe ‘sabor’.
Duma forma mais detalhada a receita consistiria em colocar seis colheres de proteína que possam coagular num recipiente. Adicionar-se-iam quatro colheres de água, duas colheres de glucose, colorantes, e aminoácidos de acordo com o gosto de cada um. De seguida, adicionar-se-iam compostos odoríferos dissolvidos em óleo (por exemplo, 1-octeno-3 ou heptanona), dispondo esta massa sobre papel em finas camadas. Depois disso, cozinhar-se-ia em forno micro-ondas por alguns segundos até coagular. De seguida, dispor-se-ia estas finas camadas de massa coagulada numa única peça; tal como um mille-feuilles. Servir-se-ia com molho.
Os Compostos
Os compostos são o cerne da “Cozinha Nota-a-Nota”. Mas que compostos são estes? É o próprio Hervé que nos remete para esta questão fundamental. Na sua perspetiva, estas substâncias continuam a ser desconhecidas do grande público, tanto, que geralmente são confundidas com moléculas, produtos químicos, compostos sintéticos, e sabe-se lá mais o quê! E continua: “Coloque um lombo de novilho no forno quente, s a 200° C. Após 10 minutos, a superfície da carne torna-se escura porque os compostos da carne reagem e transformam-se. Isto são compostos químicos? Não, são compostos”.
A água é um composto porque é formada por objetos muito pequenos, que estão constantemente em rotação; as chamadas moléculas (neste caso, moléculas de água). Se a água é um composto, não é porque é constituída por moléculas de água, mas porque as moléculas de água, todas elas idênticas, são compostas de átomos diferentes. Assim, numa molécula de água existe dois átomos de um tipo (H), e apenas um átomo de outro tipo (O). Equacionando-se, temos a famosa fórmula H2O.
Para além da água, a ‘Cozinha Nota-a-Nota’ utiliza compostos diversos como ácido cítrico, ácido tartárico, ágar-ágar, alginato de sódio, amido, betacaroteno, bicarbonato de sódio, etanol, fosfato de cálcio, glucose, glutamato monossódico, lactato de cálcio, lecitina de soja, entre muitos outros. A lista é imensa, e alguns destes compostos são bem conhecidos de todos nós!
Artificial vs. natural
Notemos a seguinte premissa: uma coisa é mais natural do que artificial pelo simples facto de que não foi transformada por ação humana. Tal como uma explosão de um vulcão é um fenómeno natural e uma melodia musical é uma criação artificial. A partir desta analogia segue que, nenhuma comida preparada é natural, visto que alimentos preparados, por definição, são resultado de manipulação humana, ou seja, de uma coisa dita artificial.
Em suma, os alimentos são menos naturais do que à partida poderíamos supor. Consideremos, por exemplo, a distância que separa a cenoura selvagem, fibrosa e dura, da cenoura cultivada, artificial, de cor laranja viva e rica em açúcares. Os nossos alimentos não são naturais, e nunca foram!
O artificial é algo bastante notável, muito superior ao natural, porque foi desenhado por seres humanos e realizado através do seu próprio trabalho. A nossa roupa, as nossas casas, os nossos computadores, os nossos medicamentos e os nossos cosméticos — tudo isso, e muitas outras coisas são artificiais. Sem elas, muitos de nós já teríamos morrido, e isso há muito tempo!
Posto isto, teremos que perguntar o seguinte: porque é que algumas pessoas pensam que o artificial é inequivocamente mau? Sem dúvida porque somos animais que evoluíram ao longo do tempo, por um lado, e porque nem todas as coisas que fazemos são igualmente boas, por outro. Não existe nenhuma dúvida relativamente à primeira ideia; somos sem dúvida animais, e como animais que somos, fomos codificados a partir de biliões de anos de evolução biológica. Se uma criança recém-nascida (não menos que um macaco recém-nascido) sorri quando lhe esfregamos açúcar nos lábios é porque o seu instinto animal lhe diz que o açúcar é uma fonte de energia. Isto não é surpresa, uma vez que evoluíram conjuntamente com as plantas —, os frutos doces produzidos pelas plantas atraem os primatas, e por sua vez os primatas dispersam as suas sementes.
Agora tomemos o caso da baunilha e dos vários extratos e preparações que são vendidos nos hipermercados. Para começar, a vanilina é um composto e não deve ser confundido com a baunilha, uma vagem fermentada. Também é importante ter em mente que a baunilha não é um produto natural. É antes o resultado de um processo de manufatura bastante elaborado, em que a vagem ou cápsula de uma orquídea do género Vanilla é sujeita a uma série de procedimentos: escaldar, adoçar, secar, condicionar (durante a qual é mantida em caixas fechadas e curadas durante cinco ou seis meses), e só posteriormente classificada de acordo com as suas características. A vagem torna-se castanha apenas durante o estágio de adoçamento, quando uma determinada reação enzimática ocorre, liberando apenas o seu aroma durante as fases de secagem e condicionamento, quando o teor de água for reduzido.
Composto natural vs. composto sintético
A diferença entre composto natural e composto sintético tornar-se-á clara de uma vez por todas se olharmos com atenção para aquilo de que é feito a água. Uma gota de água que caia do céu é composta de moléculas, sendo que cada uma delas tem, como todos nós sabemos, dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio. Todas estas moléculas são de origem natural porque o céu é uma parte da natureza, e não um produto da atividade humana. Mas estas moléculas são em todos os aspetos idênticas àquelas que um químico pode obter em laboratório fazendo reagir duas espécies de gases, nomeadamente H² e O². Uma chama ou faísca que entre em contato com a mistura destes dois gases produzirá uma explosão, fazendo com que os átomos dos dois gases se reorganizem em moléculas de água.
Ou seja, quer se trate de água que provenha do céu ou água que tenha sido sintetizada, ambas são constituídas por moléculas, e cada uma destas moléculas consiste numa única combinação de três átomos. As propriedades físicas, químicas, sensoriais e nutricionais são inteiramente as mesmas para os dois tipos de água, ainda que uma das duas tenha sido sintetizada.
Os químicos também sabem como sintetizar compostos que não se encontram na natureza. Rearranjando os compostos naturais, aprenderam a construir compostos que não tinham sido anteriormente identificados. E, os cozinheiros fazem exatamente o mesmo quando conferem sabor à comida: o calor desenvolve compostos que de início não estavam presentes, e que em muitos casos nem sequer existem na natureza, pelo menos, até ao momento.
Compostos puros e misturas de compostos
Na natureza existe cerca de cem distintos átomos, conhecidos por elementos. Todas as moléculas (mais precisamente, todas as moléculas que compõem os compostos) são formadas por átomos. Um composto puro é feito de moléculas idênticas (H2O) formadas por dois distintos átomos. O sal e o açúcar são muito familiares para nós, mas o que dizer do ácido acético, do etanol, do limoneno, do ácido cítrico ou da hidroxiprolina? Ao contrário do sal e do açúcar, eles não são usados na cozinha tradicional. Em vez disso são misturados com outros produtos; são misturas de compostos.
Na sua forma pura estes compostos são geralmente pós, cristais ou líquidos. São geralmente brancos, mas nem sempre. O betacaroteno, por exemplo, um dos compostos que contribuem para a cor das cenouras é de cor laranja brilhante e a clorofila pura é verde.
Muito mais haveria para dizer deste conceito inovador. Assumir que no futuro a cozinha seja construída a partir de compostos é um desafio no mínimo estimulante. Segundo o criador, Hervé This, todos os alimentos são artificiais. E, se assim o é, duma forma simplificada basta educar as massas, explicando o que é o natural e o que é o artificial.
Na verdade, estamos na presença de um conceito fora do comum. De Hervé, um dos filhos disse: “O pai é um barroco!”. Ora, ser-se barroco é ser-se exuberante, o mesmo que dizer ser-se extravagante, fora do comum. E Hervé sabe que o é! Hervé é um evolucionista nato, lógico, talvez genial.
Mas os problemas que tal conceito coloca vai muito para além do sabor (ou do não-sabor), eu sei! A questão é bastante mais complexa. Envolve o tratamento dos desperdícios, dos recursos ilimitados e da sustentabilidade do planeta. O problema que Hervé tenta solucionar é em primeira estância de ordem essencial; trata das causas maiores que apaziguarão o mundo nos próximos anos, como alimentar 10 mil milhões de pessoas, por exemplo. E só por isso merece inteiramente o nosso respeito.
Muitas vezes ouvimos: porque não tomar um comprimido que contenha todos os nutrientes necessários ao bom funcionamento do organismo? Será assim tão descabido? Em forma de paródia gostaria de terminar dizendo que desta forma eliminaríamos de todo a refeição que mais parece uma coisa ‘medieval’. Eliminaríamos a cultura. Também pouparíamos mais energia que a “Cozinha Nota-a-Nota” porventura diz gastar, que é muito pouca.
Entretanto, esquecemo-nos de perguntar ao Hervé qual a quantidade de kilowatts que tais processos de fracionamento envolvem – É quase certo que envolvem bastante! Também sobejaria muito mais tempo se tomássemos os tais pills. Ah, também imagino o meu tio Zé a comer um bife Hervé, ou a família Campos reunida à volta da mesa junto duma travessa cheia de proteína coagulada (albumina) à qual se teria adicionado uma pitada de bleue (corante azul); talvez só para fazer lembrar que existe o céu.
Bibliografia
This, H., 2014. Note by Note Cooking, The Future of Food, New York, Columbia University Press.
E. van der Linden, D. J. McClements e J. Ubbink, Molecular Gastronomy: A Food Fad or an Interface for Science-based Cooking?, Food Biophysics 3 (2), 2008:246–254.
This, H: Molecular gastronomy is a scientific discipline, and note by note cuisine is the next culinary trend, This Flavour 2013, 2:1.
Mata, P., «Gastronomia Molecular», InterMagazine – Revista Profissional de Hotelaria e Restauração, 174, Novembro 2005.
Mata, P., «Gastronomia molecular, um incentivo à criatividade», InterMagazine – Revista Profissional de Hotelaria e Restauração, 172, Setembro 2005.