A cozinha é um sistema de regras. No entanto, algumas destas regras não têm uma explicação aparente. Por exemplo: por que motivo o alecrim (Rosmarinus officinalis) é quase sempre empregue em pratos de carne? E por que motivo a hortelã-da-ribeira (Mentha cervina) é quase sempre empregue em pratos de peixe? A par destes dois exemplos poder-se-iam enumerar muitos outros — a cozinha está repleta deles.
Ao marinarmos coelho com alecrim ou robalo com hortelã-da-ribeira estamos a seguir uma regra que se baseia em quê? Será que tais regras são fruto do efeito de algum tipo de serendipidade ocorrido sabe-se lá onde e quando? Talvez o emparelhamento de alimentos (em inglês food pairing) nos possa dizer algo mais sobre isso.
Combinar x com y e/ou z de modo a criar (novas) sensações é algo maravilhoso na medida em que tal ação compreende uma grande mestria. Este conhecimento depende da técnica e da associação de ideias, bem como de um excelente palato mental.
Na maioria das vezes parte-se do sabor para formar o “puzzle”’. Nessas circunstâncias, o sabor pode, ou não, consoante os casos, vir acoplado doutras sensações. A mais comum é a sensação que provém da textura. Ou seja, a relação de dois planos sensoriais proporcionará uma imagem feita ideia. Uma após outra, tem-se uma rede complexa de links. E, a isso, chama-se puzzlar! Ao fim último do jogo chamamos “harmonia”. Este foi o cenário até aos primeiros anos do século XXI. Por essa altura haveria de surgir o emparelhamento de alimentos (do inglês food pairing) e, anos mais tarde, uma ferramenta virtual capaz de harmonizar sabores.
Mas, em primeiro lugar, definamos o emparelhamento de alimentos que, em inglês também é chamado por vezes de flavor pairing, que se pode traduzir como “emparelhamento ao nível do sabor”. Este método advoga que, quantos mais compostos aromáticos dois produtos compartilharem, melhor combinarão entre si, logo, melhor nos vão saber ao experienciarmo-los em simultâneo. O método é baseado no facto de que 80% do sabor é determinado pela maneira como o nariz capta os compostos voláteis (substâncias de várias classes químicas presentes em quantidades bastante reduzidas nos alimentos responsáveis pelo aroma, contribuindo de forma decisiva para a sensação do sabor), sendo que os restantes 20% se reportam ao gosto e à sensação táctil que se tem através da boca.
Em 2002, o Chef Heston Blumenthal constatou que o caviar e o chocolate branco funcionavam realmente bem, no entanto, não entendia o porquê. O desconhecimento levou-o a contatar François Benzi, um cientista que terá conhecido em 2001, em Erice, na Sicília, durante um dos primeiros Workshops de Gastronomia Molecular realizados no mundo. Durante o workshop, Benzi terá dito algo que captou a atenção de Heston: o fígado de porco e o jasmim iam muito bem um com o outro porque partilhavam um composto volátil de seu nome indol.
Mais tarde Heston dá a provar a Benzi a parelha caviar-chocolate branco, à qual a reação de Benzi foi de perplexidade. Após uma breve indagação terá dito a Heston que tanto o caviar quanto o chocolate branco contêm um alto teor de aminas; compostos orgânicos que derivam do amoníaco, em particular trimetilamina. Depois desta parelha Heston tiraria da cartola emparelhamentos tão invulgares quanto salmão-alcaçuz, ostra-maracujá, banana-salsa ou alho-café, entre outros exemplos.
Posteriormente descobrir-se-iam que as moléculas ionona e hexanoato de metilo eram responsáveis por emparelhamentos do tipo cenoura-violeta e ananás-queijo azul-vinho branco, respetivamente. Deduz-se que emparelhamentos como chocolate-tabaco, maçã-lavanda, cebola-alho-café, tomate-morango ou cacau-cogumelos tenham uma explicação a nível molecular. Estas descobertas só foram possíveis graças à pulsão desenfreada de Heston pela descoberta.
Em 2007, surgiria o site FoodParing.be da autoria de Bernard Lahousse. Aqui, apenas a um clic tem-se acesso a vários tipos de emparelhamentos. Após se selecionar um determinado ingrediente, o site apresenta uma “árvore de emparelhamento”, a qual é estabelecida consoante a sobreposição dos perfis aromáticos, ou seja, com base nos compostos voláteis dos ingredientes que lhes estão associados. A verdade é que a maior parte desta informação não é muito transparente, visto que o site não menciona como é que a sobreposição é determinada. Ora, para se conseguir traçar uma “árvore de emparelhamento” fidedigna, esta terá que, incluir os perfis de voláteis recorrendo a técnicas analíticas como cromatografia líquida de alta eficiência ou cromatografia gasosa, entre outros.
De modo a comprovar que o emparelhamento de alimentos baseado na sobreposição não é garantia de sucesso numa receita, Martin Lersch decidiu testar o método no seu blogue Khymos, na rubrica They Go Really Well Together (TGRWT). No seu primeiro post TGRWT pediu aos leitores para prepararem pratos utilizando alho, café e chocolate. Na verdade, todos eles partilham o mesmo composto volátil; o 2-metilfurano-3-tiol. No entanto, as opiniões não foram unânimes, e um dos grandes desafios foi encontrar a proporção correta entre cada um dos ingredientes. Segundo Lersch, o truque para uma boa receita não se baseia na sobreposição de ingredientes, mas sim na ideia de equilíbrio e harmonia, uma ideia que se aproxima muito mais daquilo que é empírico e fazendo parte do bom senso.
Outros cientistas concluíram que as combinações culinárias não se baseiam apenas na sobreposição, mas também no seu oposto; na não-sobreposição. O conceito viria a ser cunhado como anti emparelhamento (do inglês anti-pairing). O estudo deu a mostrar que cozinhas como as da Europa Ocidental e da América do Norte têm como modelo a hipótese do emparelhamento de alimentos, enquanto outras a rejeitam por completo, como por exemplo, as cozinhas do Leste Asiático e a cozinha Mediterrânica.
Vejamos um exemplo: de acordo com o emparelhamento de alimentos, produtos como tomate e canela não são de todo compatíveis, visto que não partilham compostos aromáticos. No entanto, para a maioria dos gregos é uma combinação comum — e, o mesmo método de emparelhamento se aplica à doçaria portuguesa, uma vez que grande parte das receitas de doce de tomate levam pau de canela.
É claro que isso tem uma forte componente cultural, sendo parte integrante de uma cultura do gosto passada de geração em geração. De modo a se acentuar tal ideia, um outro estudo demonstrou que os emparelhamentos com maior sobreposição de compostos não eram melhores que os emparelhamentos onde havia menor percentagem de sobreposição — de facto não era isso que fazia com que soubessem melhor ou pior. Por exemplo, o emparelhamento chocolate-tomate, com sobreposição de cerca de 40% não foi considerado melhor que o emparelhamento couve-flor-pera, onde não há qualquer tipo de sobreposição.
Para além do emparelhamento de alimentos existem alternativas de forma a consumar a arte da combinação. Por exemplo, livros como The Flavor Bible, de Andrew Dornenberg e Karenn Page´s, ou o Flavour Thesaurus de Niki Segnit´s, oferecem todo um rol de combinações possíveis, enquanto facultam informações acerca de como criar outras. A título de exemplo pode-se referir o seguinte esquema: se alcaparra vai bem com amêndoa, e se amêndoa vai bem com maçã, então a combinação entre maçã e alcaparra deverá ser bem-sucedida. Chefes como Grant Achatz usam métodos idênticos.
De acordo com Elisabeth Rozin, a cozinha necessita de ser interpretada com “espírito aberto”, pois só assim é possível usufruir da liberdade associativa plena que, por sinal, está isenta de preconceitos culturais e eruditos.
Referências
Ahn, Y. -Y. et al., 2011. Flavor network and the principles of food pairing. Scientific reports, 1, p.196.
Klepper, M., 2011. Food Pairing Theory: A European Fad, in Gastronomica, Vol.11, No.4, pp.55–58.
Lersch, M., 2007. TGRWT #1 roundup – coffee, chocolate, garlic, in Khymos.