Recentemente, Padre Júlio Lancelotti afirmou que não basta dar de comer para a população de rua; é preciso comer junto. As notícias da guerra e da violência contra mulheres, pretos, pobres e indígenas me entristecem, mas saber que existe uma pessoa no nosso país que espelha nas suas ações o seu coração compassivo é um alento. Me inspira a cultivar a virtude da compaixão – na minha opinião, o tom mais elevado que podemos usar para o sentimento que associamos como amor. Uma das faces do amor é a partilha.

Na Bíblia, Jesus dividiu com os seus apóstolos o que seria a sua última ceia e, segundo os quatro evangelhos, partiu e dividiu o pão. Dessa forma, a última ceia se transformou no símbolo da comunhão. Recentemente, a perseguição ao Padre Lancelotti me motivou a refletir e escrever a respeito da ideia de comunhão pela partilha do alimento não a partir da narrativa bíblica, ou qualquer perspectiva religiosa, e sim da nossa vida em família, da nossa história evolutiva e da nossa conexão com outros seres.

Este artigo trata da comensalidade: comer em companhia. Quando criança, eu aprendi sobre o tempo de escutar e de falar e sobre como me portar na mesa perante os adultos na mesa circular da casa dos meus avós paternos. A minha saudosa avó, disposta a agradar a todos, preparava refeições que pudessem combinar os gostos dos filhos e dos netos com os ingredientes frescos do dia. Antes das refeições postas à mesa, ela pensava nas receitas possíveis para que os comensais ficassem satisfeitos. Então, almoçar ou jantar juntos também era assistir ao seu cuidado conosco.

Hoje, eu reconheço que havia uma pessoa a orquestrar condições favoráveis para o nosso bem-estar. Uma pessoa compassiva na família é como um diamante que reflete luz para todos os lados. No momento de hoje, sem a sua presença física, contudo, saboreio a sua presença no tecido da memória. Então, eu sou grata por ter me alimentado, em substância e em sutileza, do seu amor. O fato é que eu experenciei a percepção de que as relações em família passaram a ficar distantes sem momentos de refeição compartilhada.

De acordo com o Guia Alimentar da População Brasileira, material que eu uso como referência como professora de Ciências, a comensalidade é uma orientação importante para uma alimentação saudável. Uso este conceito como um ponto importante do texto para que eu possa conversar com os meus alunos sobre os hábitos das famílias e, então, percebo o quanto comer juntos é incomum hoje em dia.

A falta do hábito de comer juntos pode ser justificada pelos horários desencontrados. Então, é comum que nas famílias estejamos soltos, e supostamente livres, para que cada pessoa se alimente quando queira, esquente o seu prato de comida, talvez no micro-ondas, e coma enquanto assiste algum vídeo no celular.

O alimento simboliza o que nos nutre e o momento reservado a se nutrir merece ser honrado. Afinal, para que o alimento chegue às casas, muito trabalho foi feito e vidas foram sacrificadas – seja vida de animais, seja vida de plantas. Mas, comumente, a partilha do alimento foi dessacralizada e desencantada no nosso cotidiano. Comemos para saciar a nossa fome e escolhemos o que gostamos de comer. Não precisamos saber da fome de quem mora conosco, dos seus gostos ou dos comentários sobre o seu dia. Perdemos, todos, com este desencontro.

Mas, nem tudo são perdas para quem vive como eu e, provavelmente, como você. É possível que você usufrua de um repertório de alternativas de refeições ao entrar em algum aplicativo e escolher o tipo de comida e, a partir desta escolha, o prato de comida. Se você tem acesso a mercados e feiras e condições de escolher o que agrada você e o que você sabe que também agrada o seu corpo e faz bem para a sua saúde, estamos, eu e você, distantes do quadro de insegurança alimentar. E acrescente a isso tudo, uma companhia tanto para o preparo de alimentos quanto para a companhia ao se alimentar. Honremos a nossa sorte.

Uso a palavra sorte porque assim reconheço a nossa posição. Para quem mora no Brasil, conhece a herança a que eu me refiro: a sorte progressiva, que fabrica mais sorte. Em outras palavras, privilégio de classe. Eu posso ter os meus méritos, como você certamente tem os seus, mas o que nos leva a usufruir de liberdade de escolhas se deve, em grande parte, a uma estrada pavimentada há gerações, de gente com acesso facilitado à educação e serviços, que não independe da cor da pele. O que seria de você sem a sua família e sem o apoio recebido dos seus?

A declaração do Padre Júlio Lancelotti se refere à população de rua, que vive situações de insegurança alimentar graves, pessoas que não tiveram a nossa sorte. Mas, a necessidade de comer juntos pode iluminar, igualmente, as nossas relações de convívio. O respeito e o cuidado de preparar e partilhar o alimento são uma das premissas de viver juntos. Desde os primeiros humanos, imagino a divisão de trabalho para produzir um alimento, que exigia, como ainda exige, a colaboração de corpos e mentes.

Na nossa história evolutiva, o uso da linguagem provavelmente surgiu a partir da nossa necessidade de colaboração, quando os laços sociais foram criados. A nossa cola social é a conversa, como afirmou Yuval Noah Harari1. O que nos une e o que nos nutre é a vontade de viver para contar histórias, pensar juntos sobre o que se vive, falar da sua vida e da vida dos outros.

Se perdemos o hábito de compartilhar o alimento em nossas famílias, é fora da nossa realidade compartilhar com desconhecidos, que podem ser perigosos e que certamente nos fazem nos sentir culpados por termos o que comer. Não é fácil ser como o Padre Lancelotti. Justamente por isso, ganhamos tanto com a sua presença.

Com essa consideração em forma de texto, eu presto a minha singela homenagem ao padre pelo seu trabalho e por ser uma inspiração para a lapidação das nossas ações em benefício dos desfavorecidos com a nossa sorte.

Notas

1 Harari, Yuval Noah. Sapiens, uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras. 2020.