Por uma analogia com uma suposta vantagem de se estar no topo da cadeia alimentar ou por alguma simbologia de arquétipos (o que dá no mesmo e também não explica nada), desde as fantasiosas disputas da infância sermos o tigre, a águia ou o lobo tem a preferência na brincadeira. E mesmo já crescidos, é comum os homens intitularem os instrumentos e insígnias de suas hostes com nomes de aves de rapina, serpentes ou dragões. Episodicamente, para fugir do lugar comum ou para referirmo-nos a um caráter mais específico, acontece também de elegermos um bicho famoso pela astúcia (para não dizer “malandragem”), como um cuco ou uma raposa, por exemplo.

Na prática, porém, nossas estratégias de sobrevivência a longo prazo sempre se assemelharam mais com as de alguns insetos ou com as de um joão-de-barro que com as dos grandes predadores. Contudo, aquele referencial de dominação feroz ou ladina persiste mesmo quando nos restringimos às limitadas capacidades físicas do gênero humano. Assim, em nosso imaginário, o modelo do herói reveste-se com as virtudes do merecimento sem no entanto poder se despir do destemor do guerreiro, do explorador intimorato ou do conquistador façanhudo com sua espada em riste.

Por suposto, estes foram atributos dos que superaram os desafios que instituíram nossa espécie, os que espalharam nossa cepa pelo mundo, os que se atreveram a afrontar o desconhecido e estipularam nossos destinos. Ao passo que ao recatado lavrador, ao sedentário e prudente camponês, é reservado um papel menor, subalterno. A estes, uma imagética consagrou-os na figura pejorativa do sujeito à mercê dos caprichos da terra e de suas estações, do caipira, do aldeão crédulo e passivo, resignado e indolente.

Em Raízes do Brasil, publicado de 1936, sem juízos de valor Sérgio B. de Holanda1 contrabalançou certos princípios que seriam encarnados por esses dois tipos distintos, aos quais chamou de guerreiros/aventureiros e trabalhadores/cultivadores:

[...] para uns, o objeto final, a mira de todo esforço, o ponto de chegada, assume relevância tão capital que chega a dispensar, por secundários, quase supérfluos, todos os processos intermediários. Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore. [já o outro] enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente [...] tem sentido bem nítido para ele.

Em que pese a alegação de que os tipos acima sejam apenas estereótipos, o fato é que, no fundo, nosso raciocínio baseia-se em modelos-padrão — um artifício mental de síntese —, difíceis, portanto, de se amputar sem que outros os substituam. Além disso, os equívocos de interpretação devem-se menos a essas convenções sociológicas do que à estreita perspectiva histórica em que os inserimos, como no caso da distorcida relação desses estereótipos com o advento e subsistência de nossa civilização. Na paleontropologia e suas disciplinas adjacentes, passou-se a distingui-los em dois grupos: o dos caçadores/coletores e o dos agricultores2.

Fora desses contextos meramente descritivos, entretanto, esses conceitos deram lugar a equiparações enganosas em vez de servirem como indício pré-histórico para a desmistificação do conto dos heróis. Porque, diverso da imagem alternativa que os paradigmas constroem, angariar conhecimentos no manejo e irrigação do solo aliados à necessidade de domínio de uma terra fértil requeria muito mais denodo, determinação e rusticidade que caminhar a esmo ou na aventura. Em suma, a colheita era uma garantia digna de um esforço paciente e prolongado, enquanto os frutos que por si mesma a terra dá, e a sorte de encontrá-los, eram, na verdade, a aposta sem lastro de uma condição depauperada e envilecida.

Uma das penúrias a que estava sujeito o tipo caçador-coletor era terem de recorrer à emigração, o que se faz não sem incerteza e sofríveis deslocamentos e readaptações, o que, aliás, faz do nomadismo, ao contrário do que crê o senso comum, não uma categoria ou um estilo de vida, mas uma imperiosa e excruciante necessidade, e na medida do possível apenas transitória, embora no mais das vezes contínua. Sua outra opção seria, pelo apelo à caridade ou pelo assalto armado, conseguir alimento ou abrigo com os que se haviam resignado ao calejante mas recompensador cultivo do horto e da fauna doméstica.

Acontece que, também ao contrário do que se costuma pensar, esses grupos que recurvados sob o sol semeavam e irrigavam a promessa da terra, e justo por isso mesmo, careciam de ser mais densos, precavidos e coesos. Disto derivava uma coalisão de energias, técnicas e valores comuns e cooperativos muito superior à que jamais poderiam alcançar incautos, imediatistas, “despojados” e famélicos peregrinos forçados a conseguir o que precisavam para sobreviver na sorte ou no grito.

Um outro malefício foi o fato de, em geral, e até hoje, mas sobretudo nas savanas, ser natural que as mulheres evitem o enlace com parceiros desarraigados. O instinto lhes admoestava que gravidez requer repouso, estabilidade, segurança e sustento. Assim, a suspeita de escassez vindoura afugentaria as fêmeas do risco de submeterem a prole miúda ao itinerante, incerto e muitas vezes violento circuito dos recursos do acaso. Ademais, é provável que assim desprovidos ou com acesso limitado a mulheres consequentes e constantes, a abstinência sexual, mas principalmente de amorosidade feminil e filial, tornava-se um flagelo permanente e desagregador no ceio dos aventureiros grupos de caçadoras-coletoras.

É possível, todavia, que ambas as características coexistam em uma mesma coletividade ou até em um único indivíduo, como no quase mitológico Cincinato3., ou como uma espécie de ethos, cujo pendor para um dos polos do variegado gradiente da personalidade humana seria resultado de vastas e inextrincáveis circunstâncias histórico-econômicas e seus derivados socioculturais4. Assim como é plausível que ambos possam cooperar entre si ou suplementarem-se. A era dos grandes descobrimentos marítimos dos sécs. XV e XVI pode ter sido o rebento mais profícuo da combinação do apressado e descarado sujeito aventuroso operando em seu proveito as naves proporcionadas pela metódica circunspeção de homens industriosos. Em A República, Platão5 os aglutina em uma essência social e cosmológica. Como para ele a própria alma humana era constituída de uma natureza ternária, na mesma medida e reflexo o mundo carecia de agricultores, guerreiros e dirigentes.

Mas se recuarmos no tempo para antes dos primeiros ideais republicanos, para a época rudimentar em que a constituição social era numericamente pouco maior que a da família nuclear, em que a divisão de tarefas não era muito clara, em capacidade e importância, é provável que a imprevidência, a procrastinação e o marasmo eram o que, de última hora, impeliam muitos à mera, embora arriscada, ação aventureira; a mesma que, em nosso imaginário e nas loas dos poetas épicos, é prestigiada como coragem e desprendimento virtuosos. Enquanto que a meritória prudência do obreiro diminui em uma espécie de renúncia, subserviência ou avareza.

Recuando ainda mais, à animalidade, é instrutiva a confissão feita certa vez pelo célebre estudioso britânico do mundo animal Alan Root. Quase no fim da vida com mais cinco décadas dedicadas a documentários sobre safáris na África, Root reconheceu que as magníficas imagens de portentosos felinos caçando e devorando suas presas haviam contribuído para fabricar um mito, uma vez que nenhum outro gênero seria mais acometido pelas agruras da barbárie e da escassez que o dos grandes carnívoros.

Segundo o inglês, é comum que os leões, além de viverem em eternas e sangrentas guerras de extermínio contra outros grupos de leões por fêmeas e territórios, passem meses a fio sem se alimentar, à míngua de restos de carniça. O esforço que precisam despender em uma caçada é descomunal e só ocasionalmente obtêm sucesso, ou abatendo descarnados espécimes já senis ou debilitados deserdados pelo seu próprio rebanho. Mas como estes raros momentos de sorte são os mais divulgados em vídeos, justo por serem os que mais aplacam o interesse do público, levam a crer que sua dieta é fresca e farta, que predominam e detêm privilégios na selva. Assim, de acordo com o documentarista, as numerosas manadas de antílopes e gnus pastando plácidos nas pradarias é que seriam o verdadeiro exemplo de uma vida abundante, tranquila e longeva.

Óbvio que a humanidade não chega a estar cindida como entre carnívoros e herbívoros, mas nossa percepção histórica dos fatos talvez se bifurque por falsos caminhos. As velhas teses mitológicas que nos repartiam em diferentes naturezas, como entre Atlantis e Lemurianos ou entre platônicos e aristotélicos há muito já não se sustentam. Tampouco as étnicas, como o curioso esquema de Isaac La Peyrère, que se recusando a pertencer a um balaio ordinário mas sem poder perjurar sua fé biblicista, por volta de 1655 concluíra que Adão seria o primeiro homem, sim, mas em relação apenas à estirpe dos hebreus.

Baseado em suas longas viagens de navio compartilhando o convés com marinheiros das mais variadas origens, em meados do séc. XIX um certo Adolf Bastian6 advogou que no fundo todos os homens possuíam uma essência espiritual comum, o que chamou de unidade psíquica da humanidade. Ainda que sem querer, e por motivos alheios aos da prolífica escola antropológica de Franz Boas e dos ideais do igualitarismo contemporâneo, Bastian talvez estivesse com a razão, e não apenas no âmago de sua doutrina, mas em aspectos difusos como o de que, por uma misteriosa ingratidão, tendemos a inverter os papéis históricos de nossos ancestrais, como parece ser o caso do mito enaltecedor do aventureiro falaz em detrimento do obreiro modesto mas pertinaz.

A despeito do remotíssimo Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo, da secular e corriqueira fábula de Esopo sobre a cigarra festeira e as formigas atarefadas, de tantas e recorrentes ameaças de ruína e destruição, a despeito dos santos e dos filósofos e de tantas evidências em contrário, o que sucedeu foi que esse feitio, digamos, negligente, afoito e “desbravador” do homem foi o que de fato se transubstanciou no perfil do herói na conduta matriz e exemplar de nossa percepção histórica.

Vai ver que é por isso que temos a sensação cada vez mais premente de que, em determinada altura do nosso percurso civilizacional, tomamos um caminho errado. E porque desde a tenra infância preferimos ser o tigre a ser uma simples abelha ou um joão-de-barro. Assim como terá sido que, por essas e por outras, repudiaram o homem sem o gládio afiado que devia portar o messias prescrito nas profecias.

Notas

1 Holanda, Sérgio B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 [1936].
2 A expressão “agricultura” pode levar a uma certa exorbitância na percepção do que de fato se tratava, porque remete ao latifúndio de grandes plantações, ao agronegócio moderno, quando, naquela idade, o que de fato ocorria eram pequenos roçados ou até mesmo a simples poda.
3 Tito Lívio registra o caso de Lúcio Quíncio Cincinato. Instado pelo Senado romano a abandonar sua vida pastoril para apaziguar os conflitos que grassavam no país, Cincinato aceita e supera o desafio, mas após sua vitoriosa campanha militar decide voltar a sua pacata vida agrária. Em 458 a. C., novamente o Senado o convoca contra o terror das invasões bárbaras. Nomeado Dictator, ditador plenipotenciário, Cincinato vence afinal os invasores na Batalha do Monte Álgido. Em seguida, embora aclamado, uma vez mais renuncia ao poder e retorna a sua simples vida interiorana. Lívio, Tito. History of Rome. New York: E. P. Dutton & Co, 1947 [c. séc. I a. C.].
4 Sérgio B. de Holanda assim os definiu: “Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral às ações que sente ânimo em praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro — audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem [...] Por outro lado, as energias e esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; [...] nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador” (Holanda, 2001 [1936], pp. 44-45).
5 Platão. A República. Porto Alegre: Simplíssimo, 2021 [séc. IV a. C.].
6 Fischer, M. Adolf Bastian and his universal archive of humanity. Zurique: OLMS Publisher, 2007.