Na última quinta feira, dia 30 de novembro, o Museu Judaico de São Paulo deu início a sua feira literária anual. Entre os convidados, receberam David Baddiel para discutir seu livro mais recente: Jews Don’t Count (Judeus não contam, em tradução para o português). O livro foi escrito em 2021, então não engloba o conflito mais recente do oriente médio, mas discorre sobre a forma como judeus são vistos pela sociedade no geral, e o ódio velado que frequentemente os acompanham, feito sempre pior pelo conflito entre Israel e o mundo Árabe. Hoje, Jews Don’t Count parece uma premonição infelizmente correta.

Baddiel é um escritor e comediante inglês, judeu e ateu. Ele explora o judaísmo como uma cultura, e não como uma religião. Também sou judia e ateia, uma condição que às vezes causa confusão na cabeça das pessoas. Na verdade, é extremamente simples: entre os judeus, alguns se identificam com o seu aspecto religioso e espiritual, e outros não. Eu, particularmente, me identifico com a história, o senso de humor, e as tradições - a questão Deus me é irrelevante. Como coloca Baddiel: Acredito em Larry David, não em Deus, e é o suficiente. O livro traz uma pergunta aparentemente simples: judeus contam? O mundo mostrou que não.

A verdade é que a capacidade de se dissociar completamente da sua religião é um luxo reservado para os cristãos. “Não tenho religião pois não acredito em Deus; comemoro natal e vou à igreja com meus avós algumas vezes por ano para agradá-los” é uma frase que já escutei várias vezes, e é completamente natural e aceitável. Ninguém a questionaria: trata-se de um ateu. Mas tentemos aplicar essa mesma frase a outros grupos étnicos: “Não tenho religião pois não acredito em Deus, mas meu nome é árabe e meus pais são muçulmanos, comemoramos os feriados típicos da cultura e sei falar a língua.” Ninguém pensaria duas vezes: muçulmano. “Não tenho religião pois não acredito em Deus, mas minha mãe é Judia, meu sobrenome é Yiddish1 e às vezes fazemos jantares de família no ano novo judaico.”

O quanto essa pessoa acredita ou deixa de acreditar em Deus é irrelevante. Sua adesão, ou não, ao movimento Sionista é irrelevante. Aos olhos da sociedade, sempre será judeu. No livro, o autor vai ainda mais longe, com uma frase que resume bem esse fato: Não crer em Deus não me livraria de Auschwitz. Ser judeu não é somente sobre autoidentificação, é um rótulo social. Aqui é importante lembrar que judeus, apesar de serem um dos povos mais antígos do mundo, compõem 0.2% da sociedade global - se isso não define uma minoria, não sei o que o faz. Mas, estranhamente, muitas vezes não somos tratados de tal forma.

O contexto hiper politicamente-correto da atualidade exige cautela ao nos referirmos a determinados grupos sociais, até exageradamente em alguns momentos. Claro, existem muitas pessoas que não toleram nenhuma diferença. Não me refiro a esse grupo exclusivo, e sim às pessoas que parecem ter muita paciência e cuidado ao falar sobre a discriminação contra negros, a comunidade LGBTQ+, asiáticos, curdos, indígenas e muçulmanos: todo e qualquer grupo que já sofreu discriminação é tratado com luvas de pelica. Menos os judeus. Judeus são vistos como poderosos: acredita-se que controlamos o mundo, regemos o mercado financeiro, lideramos Hollywood, e coordenamos os bastidores da política mundial. Quem se comoveria com um povo tão ganancioso e poderoso? Afinal, nem sequer constituímos uma minoria! Todas as outras minorias são tratadas de pobres coitadas, incapazes de navegar pelo mundo sem empatia -aparentemente- constante. Os judeus não.

Menciono Baddiel e seu livro, pois admito que quando o li há alguns meses atrás, embora tenha gostado muito, achei, na época, um pouco exagerado. Tendo crescido no Brasil e vivido alguns anos nos Estados Unidos, sempre imaginei que antissemitismo fosse um horror do passado, que haviamos conseguido deixar no século XX. Sabia que existiam pessoas extremas e intolerantes, claro - mas não imaginava que constituíssem uma quantidade relevante da população. Suspeitava muito menos do quão próximos de mim estavam. Minha reação inicial foi errada; judeus não contam.

Antissemitismo é um conceito metamórfico, estruturado da forma mais conveniente possível cada vez que uma onda nova de ódio levanta. Na península ibérica, judeus eram acusados de serem feiticeiros que bebiam o sangue de crianças; na Holanda eram acusados de serem gananciosos demais para um reino cristão; para os comunistas, eram capitalistas demais, e para os capitalistas, eram comunistas demais; para os Alemães, não eram “europeus” o suficiente; para os Muçulmanos, eram “europeus” demais. Hoje, quando muitos consideram que o pior atributo de alguém é ser caucasiano, somos “colonizadores brancos”, independentemente da maioria dos judeus terem a compleição morena, típica do oriente médio - e claro, do fato de que há 80 anos, jamais teríamos sido chamados de “brancos”. Mas de acordo com o público geral, hoje somos. Imagino o que seremos daqui a 50 anos: fadas, trolls, a reencarnação dos antigos humanoides?

Mundo afora, vemos manifestações enormes com pessoas que abertamente gritam por apoio à Hitler e ao Hamas, pedem “gás aos Judeus”, levantam suásticas e clamam, aos berros, por um segundo Holocausto. Semanalmente, aos sábados, as ruas de metrópoles europeias e na própria América Latina, assistimos atos abertamente antissemitas serem não só ignorados pelas autoridades, muitas vezes comemorados.

Repito, novamente, o exercício de pensar essa situação direcionada a qualquer outra minoria: o que aconteceria com pessoas que se unissem em apoio à destruição do povo negro? E se gritassem contra a vida dos gays? E se assediassem alunos indígenas nas faculdades e pichassem frases de ódio contra latinos? E se os presidentes de faculdades renomadas, políticos e órgãos internacionais se recusassem a condenar esses atos, se fossem feitos contra asiáticos? E se as feministas banalizassem violência sexual, porque as vítimas eram Latinas? Até no mundo das hipóteses isso é difícil de imaginar.

Claro que raramente as pessoas usam essas exatas palavras, mas as vezes sinto que as escuto pensando: como esse povo, que por tantas vezes foi quase dizimado, se atreve a ter sucesso? Eles não têm vergonha, não entendem que minorias devem sofrer, se curvar, pedir desculpas por existir? Cria-se um ciclo sem fim: o ódio aumenta a cada vez que não desistimos. Pedir um pouco é pedir demais, questionar é encher a paciência, e apontar atos errôneos é arrogância. Afinal, o que é antissemitismo comparado com homofobia, racismo ou xenofobia? Do que esse povo pode possivelmente estar reclamando? Morram de uma vez, judeus.

Em Judeus Não Contam, Baddiel reflete sobre sua relação complicada com o sionismo. David é Ashkenazi2 cresceu em Londres, filho de uma mãe Alemã e um pai Galês. Não fala hebraico, não cresceu com comida mediterrânea, e não gosta de calor. Para ele, Israel é um país exótico, não se identifica com a terra nem com as pessoas. O sionismo, a seu ver, não lhe diz respeito. Ele é um judeu europeu, que não tem vontade alguma de empacotar sua vida e de mudar para Israel. Muitos judeus compartilham desse sentimento. Mesmo assim, quando a contínua violência do Oriente Médio se faz presente nos jornais, percebe uma hostilidade e cobrança dos outros a seu redor, como se ele mesmo estivesse lá, cochichando idéias a Benjamin Netanyahu.

Não vejo essa cobrança de nenhum outro povo por discordância com um governo. Não vejo chineses sendo atacados pelo o que seu governo faz com os Uighurs, nem os russos sendo hostilizados devido à guerra na Ucrânia; muito menos multidões inteiras os culpando pelas decisões de seus líderes. Por que os judeus são culpados pelas decisões de Netanyahu? A meu ver, não passa de uma desculpa para exaltar um pensamento antigo e odioso, que até recentemente estava dormente. Ninguém questiona à um judeu sobre sua relação com sionismo ou com o partido Likud antes de xingá-lo. Ninguém está interessado em saber sobre sua árvore genealógica ou se sua família já morava em Israel antes de 1948. As opiniões negativas que muitas pessoas têm sobre o Estado de Israel, são usadas como uma desculpa para expressarem seu sentimento real sobre o povo Judeu.

Para qualquer pessoa razoável, parece bem clara a diferença entre o governo e o povo. É de praxe; os líderes ordenam, o exército segue, e o povo paga o pato. Globalmente, desde sempre. Israel parece ser uma exceção: as ações tomadas pelo governo geram um ódio absurdo contra todo e qualquer Israelense, e, além disso, todo e qualquer Judeu mundo afora. Na fala geral, não só os civis israelenses são pintados como vilões, os 9 milhões de Judeus que nem sequer moram em Israel também parecem estar envolvidos nessa conspiração maligna.

Da mesma forma, durante o conflito atual, as pessoas parecem ter dificuldade em diferenciar entre o povo Palestino, que luta pelo seu merecido estado, e o Hamas. O conflito atual é sobre o último, um grupo terrorista que não só pretende eliminar israelenses e Judeus, mas que oprime os Palestinos, submetendo-os a um regime ditatorial, imposto pelo terror. Os defensores automáticos de plantão, devem indagar quem de fato estão apoiando e a quem desejam se aliar: se forem os Palestinos em busca de uma vida digna e de paz, contem comigo; se for o Hamas, sugiro que pensem como seriam recebidos por esse grupo terrorista. Ou melhor, estimem quantas horas durariam vivos em Gaza.

Então entram as generalizações e simplificações sobre a história de um conflito centenário. Nessas horas, todos viram especialistas em geopolítica, e parecem ter a solução para um dos conflitos mais complexos da atualidade; a solução geralmente vem acompanhada por emojis infantis, frases brandas, celebrações pela morte dos inimigos de ocasião, e a óbvia conclusão que - novamente - os culpados são os Judeus. Assim como fomos os culpados pelo declínio da economia Alemã em 1930, pelos males da sociedade na Espanha e Portugal nos séculos 16 ao 18, e até pela peste negra. Do Império Russo e seus pogroms3 ao Império Otomano, ao longo das cruzadas do século 13, em cada canto do continente Europeu, ao redor do mundo Árabe e até pela América Latina, sempre, o bode expiratório mais prático são os judeus. São chocantes a manipulação de fatos, a simplificação de processos complexos e a banalização do mal. Não me parece razoável que a reação à morte de uma criança varie dependendo de sua religião ou etnia; ela é sempre repugnante e deveria causar o mesmo desespero - mas não é o caso.

Claro que questionar os atos do governo Israelense não deve ser imediatamente interpretado como antissemitismo, como já ouvi argumentado, mas a forma como isso é feito me leva a acreditar que exista sim um elemento enorme de ódio velado nessas falas recorrentes. Questionar um governo é um ato digno, que reforça a democracia. Questionar atos de agressão também é digno – desde que haja clareza sobre quem está sendo questionado e repudiado. Atualmente, não me parece que os comentários estejam sendo direcionados aos líderes, e sim ao povo em geral. Até cadáveres parecem ser culpados.

Se você, leitor, acha possível compreender a complexidade do conflito entre a Ucrânia e a Rússia, dos Armênios e Azerbaijanos em Nagorno-Karabakh, ou da guerra civil em Mianmar, sem odiar os civis vitimizados, analise se também demonstra essa distinção aos judeus do Oriente Médio. Basicamente, pergunte-se honestamente: Judeus contam? Me sento aqui hoje, com o coração completamente quebrado, não só pelas mortes e pela violência contínua, mas pela clareza de que David Baddiel estava certo: a resposta é ‘não’.

Notas

1 Yiddish: língua falada pelos judeus Ashkenazi até o século XX.
2 Ashkenazi: judeus oriundos da Europa Central e Europa do Leste.
3 Pogroms: Massacres organizados contra judeus, principalmente entre o século XIX e XX na Europa do Leste.