O julgamento do assassinato de Marielle Franco, realizado entre 30 e 31 de outubro de 2024, trouxe à tona questões fundamentais sobre justiça, representatividade e a luta contra as opressões históricas. No mês da Consciência Negra, o Brasil revisita a memória e a importância de figuras como Marielle, mulher, negra, periférica e defensora dos direitos humanos, que atuava como uma voz de resistência em favor dos marginalizados.
A condenação dos envolvidos em sua morte não encerra o caso, mas marca um passo importante na luta por justiça social, que se relaciona intimamente com discussões contemporâneas sobre epistemologias do sul, subalternidade e a busca por reconhecimento e visibilidade das vozes marginalizadas.
A trajetória de Marielle foi marcada pela defesa das minorias e pela crítica contundente à violência do Estado e à exclusão social. Segundo Boaventura de Sousa Santos1, em seu conceito de “pensamento abissal”, a sociedade moderna ocidental traça uma linha invisível que marginaliza e invisibiliza determinadas vozes, que não são consideradas relevantes ou dignas de espaço público.
Marielle representava justamente as vozes “do outro lado da linha”, aquelas que o pensamento hegemônico tende a desconsiderar. Ao levantar pautas de igualdade racial e justiça social, ela confrontava o que Santos descreve como “epistemologias dominantes” — o monopólio do conhecimento ocidental, que ignora e silencia saberes populares e periféricos2.
A relevância deste julgamento é ampliada pelo contexto de novembro, mês em que celebramos o Dia da Consciência Negra no Brasil. O racismo estrutural que afeta a população negra não se limita à violência física, mas se manifesta também sob a forma de epistemicídio, ou seja, a eliminação dos saberes, histórias e identidades negras, como descrito nas Epistemologias do Sul2.
Marielle Franco, uma mulher negra e intelectual da favela, incorporava e transmitia o conhecimento de sua comunidade, contestando a ordem dominante. Sua morte não só silenciou uma líder, mas também desafiou as estruturas que visam manter esses saberes na invisibilidade.
A filósofa Gayatri Spivak, em seu famoso ensaio Pode o Subalterno Falar?3, discute as dificuldades de as vozes subalternas serem ouvidas e reconhecidas nos discursos hegemônicos.
Marielle falava, e o fazia com propriedade e força, mas seu fim trágico é um lembrete doloroso de que a sociedade ainda resiste a ouvir e a legitimar essas vozes. O julgamento dos envolvidos em seu assassinato é um passo importante, mas insuficiente para romper a barreira abissal entre os saberes dominantes e os saberes subalternos.
É necessário que o reconhecimento de Marielle vá além da punição dos culpados e chegue à valorização de seu legado e de seu conhecimento, que ela produziu e compartilhou a partir de sua experiência periférica e negra.
Na produção audiovisual Marielle, O Documentário, disponível no Globoplay, essa trajetória de luta e resistência é detalhadamente abordada, permitindo ao espectador compreender a profundidade e o impacto do trabalho de Marielle.
Este material audiovisual não só documenta a vida e a morte de uma defensora dos direitos humanos, mas também serve como uma ferramenta de conscientização sobre as complexidades e as injustiças que cercam a realidade da população negra no Brasil. Ele reforça a necessidade de continuarmos lutando contra as linhas invisíveis que separam o “outro lado” da sociedade e nos lembra que cada passo rumo à justiça é também uma ação contra o epistemicídio e a favor da pluralidade de saberes.
Assim, o julgamento de Marielle Franco serve como um marco na luta contra a invisibilidade imposta às populações negras e periféricas no Brasil. Neste mês de novembro, seu legado ecoa como um chamado à justiça e à consciência. A condenação dos envolvidos em sua morte deve ser o início de uma série de ações que visem reparar, de fato, as injustiças históricas que permeiam nossa sociedade.
Mais do que um veredicto, o julgamento de Marielle é um convite para repensarmos nossas práticas sociais e o que consideramos como saber válido e legítimo. É a oportunidade de transformar o Dia da Consciência Negra em um movimento contínuo de resgate, valorização e promoção dos saberes e das vozes subalternas. Afinal, como destaca Boaventura de Sousa Santos, somente através de uma ecologia de saberes e de um pensamento “pós-abissal” é que podemos construir uma sociedade realmente inclusiva e justa para todos.
Notas
1 Santos, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos CEBRAP, n. 79, p. 71-94, 2007.
2 Santos, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina/CES, 2009.
3 Spivak, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.