Pensei muito se deveria escrever sobre o tema que vos trago hoje, pois considero que os que são contra e os que são a favor, vão acabar por concordar em discordar — e não há mal nenhum, pois se há coisa que fortalece o debate é a diversidade de pontos de vista. Todos os temos direito a ter uma opinião e vale o que vale, os outros ou a aceitam ou a recusam. Contudo, ter uma opinião sobre determinado assunto, a meu ver, não deveria ser motivo para tomarmos lados extremados, como acontece com o assunto em específico que vos trago hoje.
Hoje decidi escrever sobre a Despenalização do Aborto, que tem incendiado a opinião pública não só em Portugal, mas também por esse mundo fora, nomeadamente, no Brasil, o exemplo que trago como comparação. Antes de tecer qualquer opinião veremos com que linhas se cosem as mulheres no que diz respeito à Lei portuguesa do aborto.
Foi perto da viragem do século XX para o século XXI, em 1998, que o assunto veio por fim à rua — dando oportunidade à sociedade de escolher um lado, de expressar a sua opinião, afinal de contas a Democracia estava instaurada em Portugal. Aliás, desde a Revolução do 25 de Abril que o tema vinha sendo discutido na sociedade — os tempos das mordaças haviam sido extintos — e vivendo num país Democrático a sociedade tem o direito e o dever de expressar a sua opinião em assuntos que dizem respeito a todos e, que consequentemente, irão afetar todos como um só.
A discussão do aborto veio às ruas por duas vezes em Portugal, a primeira foi em 1998, onde o “não” acabou por ganhar com 51% da votação que fez com que nada mudasse na lei a esse respeito. No entanto, não foi por isso que a luta parou, pois, anos mais tarde, em 2007, o assunto voltou às ruas e os portugueses voltaram ás urnas para dar o seu parecer sobre a despenalização do aborto, onde desta vez, o “sim” ganhou com 59% da votação. A luta daria, por fim, frutos. As mulheres viram mais um direito ser alcançado, onde tanto outros, em pleno século XXI são esquecidos.
A lei portuguesa sobre a Despenalização do Aborto ou Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) prevê que este possa ser realizado em quatro situações específicas: até à 10ª semana por vontade própria da mulher, no caso de se verificar que o feto terá problemas de saúde graves, por exemplo, malformações, podendo o aborto ser realizado até à 24ª semana, no caso de o feto ser considerado “inviável”, ou seja, será um bebé que não conseguirá sobreviver fora do útero materno e, nestes casos a interrupção da gravidez poderá ser feita a qualquer momento e, por último a quarta situação prevista para a realização de um IVG é em casos de crimes sexuais, que poderá ser feito até à 16ª semana da gestação.
A Lei nº16/2007 também prevê este tipo de procedimentos deve ser feito em locais prestadores de cuidados de saúde, quer sejam públicos quer privados, devidamente autorizados para o efeito. Esta lei também prevê que para a realização de um IVG é necessário um consentimento, apenas concedido em casos específicos referidos anteriormente. O consentimento deve ser entregue no estabelecimento hospitalar a realizar o procedimento com antecedência mínima de três dias — durante os quais decorre o período de reflexão — que permitirá à mulher tomar uma decisão consciente e informada.
De referir também que a Lei da Despenalização do Aborto, no que diz respeito ao período de reflexão concede à mulher acompanhamento especializado, como é referido na alínea d) no nº 2 do artigo 142 referente à Exclusão da Ilicitude nos casos de Interrupção Voluntária da Gravidez — Lei nº16/2007. Neste seguimento, a lei prevê que as mulheres que interromperem uma gravidez, independentemente do seu motivo, devem comparecer a consultas de planeamento familiar.
No entanto, à parte de tudo isto, permissões e auxílios às mulheres que desejem realizar um aborto, também foi colocado em cima da mesa a ética dos profissionais de saúde por “matarem” um feto. Como tudo na vida, cada pessoa tem a sua própria opinião e consciência sobre as questões e, nesse sentido, ninguém deve ser prejudicado por ter uma opinião, independentemente, de se concordar com ela ou não. Caso contrário, em vez de pessoas civilizadas que respeitam opiniões contrárias à nossa, passamos a ser pessoas selvagens que partem para a violência porque outrem não concordar connosco ou vice-versa.
Desta forma, os profissionais de saúde que não concordem com a realização destes procedimentos podem recusar fazê-lo mediante objeção de consciência, prevista na lei portuguesa da Interrupção da Voluntária da Gravidez. A Lei nº7/92 de 12 maio, relativa à objeção de consciência, diz que um profissional pode aludir à objeção de consciência quando por motivos específicos (religiosos, morais, humanísticos ou filosóficos) não possam praticar/usar atos violentos contra outrem, mesmo que seja para a salvaguarda do seu semelhante.
A Despenalização do Aborto, em Portugal, viria outra vez a lume durantes as Eleições Legislativas de 2024, quando Paulo Núncio, vice-presidente do CDS-PP (Partido do Centro Democrático Social) e, na altura, na corrida por Lisboa pelo partido AD (Aliança Democrática), veio defender que era necessário proceder a mudanças na lei do aborto. Não sei o que é que o deputado pretendeu com tal afirmação, mas espero que não seja reverter um dos direitos das mulheres que tanto custou a ser conquistado e, mesmo depois de 17 anos de a lei estar em vigor continua a ser contestada.
Sim, concordo que o aborto deve ser permitido, mas em casos específicos, porque já sabemos que sem “regras” as coisas tendem sempre a estazar para os extremos e não há necessidade nenhuma disso. Pergunto em que medida é que a lei do aborto deve ser remodelada? A lei prevê que a mulher, se assim o entender, pode interromper a sua gravidez até à 10ª semana e também prevê o aborto para casos mais específicos e delicados, já mencionado. A legislação também prevê que, independentemente, desses casos específicos é necessário um período de reflexão para que a mulher possa ponderar a situação e tomar uma escolha devidamente informada e livre.
Quais seriam essas mudanças à lei do aborto? Retroceder no tempo em que os abortos eram proibidos e onde as mulheres que quisessem fazê-lo tinham de o pagar e correr riscos desnecessários, quando é possível fazê-lo de forma segura? Ou porque a sociedade vive conformada com a ideia de que o único papel que cabe à mulher é ser uma mãe e esposa extremosa como no tempo do outro Senhor? Acredito na máxima de que se vivemos num país democrático, onde nos podemos expressar livremente, também nos deveríamos ver livres dos preconceitos por fazer x ou y. Com o aborto acontece o mesmo, sim tem de se ser uma decisão ponderada, mas quem o faz não deixa de ser mais ou menos do que outrem — tem os seus motivos e ninguém os deve questionar.
Do outro lado do prisma, encontramos o Brasil que também permite à mulher realizar um aborto, mas só em casos específicos, fora isso o ato é punível com 20 anos de prisão. Podemos assim auferir que, a questão do aborto no Brasil é mais complicada para as mulheres, apesar de o IVG ser permitido também em casos específicos: risco de vida para a grávida, vítimas de crimes sexuais ou em última instância, no caso de cérebro do bebé não se formar devidamente — o que designam de anencefálico. Só perante estes casos é que as mulheres brasileiras estão permitidas a realizar um aborto, não o podendo fazer por vontade própria, como acontece em Portugal. No entender da Lei brasileira, o aborto é igual a cometer um homicídio.
Perante isto, não me faz qualquer sentido criminar alguém por “matar” quando o feto só passa a ser um ser humano a partir da 10ª semana de gestação. Depois os motivos que levam uma mulher a realizar um aborto não devem dizer quão boa ou má pessoa é — se o decidiu fazer é porque terá as suas razões e ninguém as deve questionar. O que será melhor para uma criança: crescer num lar feliz onde têm condições para a criar ou crescer desamparada dos seus progenitores, ou pior, numa instituição?
Antes de atirar pedras aos outros é preciso pensar nas coisas. Além de que não se trata apenas de respeitar as decisões alheias, de que vale proibir o aborto à força? Seja qual for o motivo da mulher para o realizar esta irá fazê-lo de qualquer das formas, só que pela via ilegal, onde estará sujeita a inúmeros riscos como infeções, lesões; quando o poderia fazer de forma livre, sem questionamentos e segura.
Sabemos que a lei portuguesa permite as mulheres realizem um aborto por vontade própria, além dos casos específicos que a lei abrange, no entanto, a meu ver o argumento do aborto perder valor quando o motivo foi “descuido”. Como diz o ditado, “quem anda à chuva molha-se” e numa altura onde existe tanta informação e inúmeros métodos de contraceção, para ambos os sexos, os “descuidos” deixam de fazer qualquer sentido. Percalços acontecem sim, mas só se não soubermos o que estamos a fazer — e neste caso duvido muito. Percalços acontecem, mas usar o aborto como forma de método de contraceção não faz sentido nem é um motivo sequer. Deixemos de enterrar a cabeça na areia quando os problemas surgem e comecemos, antes, a utilizar a mais cabeça para pensar nas consequências dos nossos atos.