Forte cisma a tua!
Não pode a gente vestir as suas ideias com as pompas da linguagem!
Ora vamos…(Camilo Castelo Branco)
Em textos anteriores, lembrei textos ou frases que fizeram História, que a alteraram ou que ficaram célebres, convocando os seus contextos originais, mas reenergizando-se nas novas ocorrências. Agora, apetece-me lembrar algumas mais reflexivas, quer por constituírem lições da História, mesmo quando são erradamente atribuídas, quer por serem obsessivamente repetidas, sinal do modo como se vincaram na nossa memória…
Afinal, como dizia Camilo Castelo Branco, “[é] necessário ter um talento criador para espetar a frase na região do sublime”, pois quando não é assim, “sem crítica nem gosto”, ei-los a “asnea[r] de modo que vence[m] o passo que vai do sublime ao ridículo” (Cenas da Foz, 1857)… e a palavra é varrida pela brisa do tempo…
Frases que constituem lições da história
Ask not what your country can do for you – ask what you can do for your country.
(John F. Kennedy, 20/1/1961)
Kennedy acreditava no poder das palavras e na sua eficácia na mobilização das massas, elaborando retoricamente os seus discursos. Esta frase do seu discurso de posse em 20 de janeiro de 1961 inverteu o modo como os eleitores encaravam a eleição, votando em função do candidato que mais prometia… e fez pensar a função do estado na arquitectura do sistema nacional, a relação entre os diferentes poderes e a comunidade. Até hoje.
[...] between war and dishonour. You [Neville Chamberlain] chose dishonour, and you will have war.
(Winston Churchill, 1938)
A frase é uma grande lição de retórica e de vida. Paralelismo com variação e assimetrias ilumina a situação e a previsibilidade dos desenvolvimentos.
Eça de Queirós recorreu a esse modelo analítico que funde geometria, matemática e retórica em algumas das suas mais eficazes farpas (1872).
Vejamos como funciona aqui.
A Alemanha invade territórios vizinhos da Checoslováquia.
Em 29-30/9/1938, no Acordo de Munique, “4 Magníficos” (Adolf Hitler pela Alemanha, Neville Chamberlain pela Grã-Bretanha, Édouard Daladier pela da França e Benito Mussolini pela Itália), aceitaram a anexação de parte da Checoslováquia, que não foi convidada para a conferência. Foi a política de “apaziguamento” e “A paz para o nosso tempo”, segundo Neville Chamberlain.
A Checoslováquia, quer pela decisão à sua revelia, quer pelo que ela representou de desrespeito pelas alianças militares em vigor (entre ela, o Reino Unido e a França), designou o acordo como a "Sentença de Munique" ou a "Traição de Munique".
Churchill afirmou a frase em epígrafe1:
You were given the choice between war and dishonour. You chose dishonour and you will have war.
A História dar-lhe-ia imediata razão: em março de 1939, Hitler anexou o resto da Checoslováquia e invadiu a Polónia em setembro, iniciando a II Guerra Mundial.
Actualmente, vivemos um momento de tentativa de resolução de 2 guerras, na Europa (Ucrânia vs. Rússia) e no Médio Oriente (Israel vs. Hamas/Gaza, Houthis/Iêmen, “terroristas”/Cisjordânia e milícias xiitas no Iraque e na Síria).
No momento em que escrevo este texto (15/2/2025), não sabemos como irão evoluir os processos negociais, ambos problemáticos…
Na Europa.
“Pré-história”: após a queda da URSS, a Ucrânia entregou as armas nucleares à Rússia segundo acordo firmado no Memorando de Budapeste (1994) por “4 magníficos” (Ucrânia, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos)2 que se comprometiam a "respeitar a independência, a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia" e a "abster-se da ameaça ou do uso da força" contra o país.
Um dos subscritores (Rússia) invadiu a Ucrânia sucessivamente.
Após a invasão da Crimeia (2014), os Acordos de Minsk (2014-15) deixaram a conquista do lado do invasor.
Após 3 anos de invasão da Ucrânia pela Rússia ("Operação Militar Especial na Ucrânia" iniciada em 24/Fev/2022), tudo parece encaminhar-se para novo e semelhante acordo promovido por um subscritor (EUA) do memorando de Budapeste. O invadido, o outro subscritor do Memorando de Budapeste e demais aliados não são convidados para as negociações.
Se isso se concretizar, a Ucrânia terá perdido sucessivamente território, acesso ao mar, terras raras e pagará a sua reconstrução (com eventual ajuda dos seus aliados).
“A paz para o nosso tempo.”
O “apaziguamento” pelas cedências europeias em 1938-39 promoveu a sua sucessão até ao confronto global: a 2ª Guerra Mundial.
E agora, Europa?
No Médio Oriente.
“Pré-história”: o aperto de mão entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat durante a assinatura dos Acordos de Oslo em 1993 tornou-se um símbolo de esperança de paz. Depois…
Em Israel, em 4/11/1995, após a Shir LaShalom/Canção pela Paz, Yitzhak Rabin é assassinado e, no bolso, a letra desse hino ficou embebida em sangue. Em Paris, em 11/11/2004, Yasser Arafat morreu, deixando a controvérsia sobre se foi um construtor ou um destruidor da paz.
Entre as 2 comunidades, a tensão irá aumentando até ao brutal ataque de 7/10/2024 realizado pelo Hamas.
Na fronteira do Líbano com Israel, a UNIFIL (força internacional de mais de 10 mil soldados destacados de c. 50 países) foi criada e estabelecida pela ONU após a primeira invasão de Israel ao sul do Líbano em 1978 para evitar movimentações terroristas nessa zona. Com um orçamento de 503 milhões de dólares, 15 hospitais, etc.. 3 E, desde 2006, a UNIFIL Maritime Task Force (MTF) apoiou as forças marítimas libanesas na vigilância das suas águas. Nenhum dos objectivos foi atingido: o Hezbollah construíu túneis, fábricas e depósitos de armamento, recebeu armamento e reforços e desenvolveu ataques que chegaram a ser diários contra Israel.
Seguindo a estratégia de “apaziguamento”, o apoio internacional financeiro, social, político e diplomático correu para Gaza e outras comunidades assumidamente inimigas de Israel desde meados do séc. XX. Para promover o desenvolvimento dessas comunidades, visando com isso, melhorar as relações entre todos. Nenhum dos objectivos foi atingido.
Em torno de Israel, a paisagem foi-se complexificando e tornando mais tensa: os territórios tornaram-se, progressivamente, em queijos gruyère pela construção de redes de túneis, os serviços da ONU (UNRWA, em especial) foram infiltrados por partidários do Hamas e afins, as populações tornaram-se reféns de um Hamas governante…
Em 7/10/2023, o Hamas (as Brigadas Qassam, seu braço armado)3 realizou um ataque sem precedentes visando específica e exclusivamente civis: pelo menos, 21 kibutz e 5 ‘moshavim’ (comunidades residenciais civis), as cidades de Sderot e Ofakim, dois festivais de música (incluindo o Nova, pela paz) e uma festa na praia. Assassinaram mais de 1.200 pessoas (de todas as idades e sexos, incluindo 282 mulheres e 36 crianças) e sequestraram cerca de 250 pessoas. Nessa noite mesmo, membros do ZAKA encheram mais de 4 camiões de pedaços de corpos humanos.
Explodiu o cerco a Israel com 7 frentes de conflito (Irão, Hamas/ Gaza, Hezbollah/Líbano; milícias/Síria, Houthis/Iêmen; grupos xiitas/ Iraque; e diferentes organizações militantes na Cisjordânia) a assumirem como seu quase exclusivo objectivo a destruição de Israel.
Israel, por seu turno, invoca o direito internacional de se defender, tenta destruir as redes terroristas e as infraestruturas terroristas no gruyère que a rodeia apesar dos escudos humanos das populações com que eles se misturam e acusa a ONU de parcialidade pelos terroristas sob a capa de Palestinianos, acabando a desvincular-se dela…
Estamos na fase da troca de reféns por prisioneiros, numérica e coreograficamente assimétrica, desproporcional.
Depois, voltaremos a um status quo com uma nação rodeada por um anel de fogo, ambos os lados apostados em eliminar-se reciprocamente?
“A paz para o nosso tempo” conquistada por meio século de política de “apaziguamento”.
E agora, mundo?
As lições da História nem sempre são apr(e)endidas… apesar de serem lições da modernidade. Mas os paralelismos e (as)simetrias retóricos, geométricos e matemáticos evidenciam-lhes o sentido, tornam-nas inequívocas…
Ao longe, em Roma, ecoam as frases "Cartago precisa ser destruída" (do senador Marco Pórcio Catão) e "para que ali nada mais crescesse" (de Cipião Africano Menor ou Cipião Emiliano, após ter arrasado, queimado e salgado Cartago).
E agora, História?
Frases ou expressões erradamente atribuídas
Discordo do que você diz, mas defenderei até à morte o seu direito de dizê-lo.
(atrib. a Voltaire)
Em 1906, Beatrice Evelyn Hall/SG Tallentyre publicou uma biografia sobre Voltaire em que descreve a relação deste com Claude Adrien Helvétius, usando a frase acima na primeira pessoa, facto que a creditou definitivamente a Voltaire.
Hoje, muitos a usam sempre que a questão do da liberdade da expressão e intelectual se coloca.
Se eles não têm pão, que comam brioches!
(atrib. à Rainha Maria Antonieta)
Nas Confissões - Livro VI (escr. 1765; publs. 1782), Jean-Jacques Rousseau atribui a frase a uma princesa, que não nomeia, a propósito do povo faminto em revolta. Paul Johnson, em Intellectuals (1988), diz que foi uma invenção de Rousseau. Nas Memórias da Condessa de Boigne (1989), esta identifica-a como sendo Madame Victoire, filha de Louis XV (Journal des débats politiques et littéraires, 10/8/1820). Segundo Véronique Campion-Vincent e Christine Shojaei Kawan5, a frase, atribuída a Maria Antonieta, teria sido divulgada por um livro infantil alemão (Pünktchen und Anton (1931), de Erich Kaestner (1899 – 1974). E por aí fora…
Poderia continuar, mas, se Maria Antonieta perdeu a cabeça por ela, convirá que eu evite o mesmo risco…
Frases ou expressões obsessivamente repetidas
Ser ou não ser, eis a questão [To be, or not to be: that is the question]
(William Shakespeare. Hamlet, escr. 1599-1601, Acto 3, Cena 1)
Esta hesitação de Hamlet sobre o caminho a seguir na encruzilhada da existência será evocada por tutti quanti experimentam a indecisão…
Independência ou morte!
(D. Pedro, Príncipe Regente do Brasil)
Foi o “Grito do Ipiranga” nas margens do rio de que tomou o nome, em 7 de setembro de 1822: ao receber informações de que as cortes de Lisboa lhe reduzido o seu poder como príncipe regente, teria reagido optando pela separação do Brasil em relação a Portugal.
E fico por aqui, suspendendo-me no momento em que recuso a lei de atracção da “vertigem das listas” (Umberto Eco)…
Referências
1Pouco antes da conferência de Munique, Churchill dissera numa carta a Lloyd George em 13/8/1938: “Acho que teremos que escolher nas próximas semanas entre a guerra e a vergonha, e tenho muito poucas dúvidas sobre qual será a decisão.” Um mês depois, reafirmará esta sua percepção das circunstâncias a Lord Moyne: “We seem to be very near the bleak choice between War and Shame. My feeling is that we shall choose Shame, and then have War thrown in a little later on even more adverse terms than at present.”
Logo após o Acordo de Munique, em resposta à afirmação eufórica de Chamberlain de que o acordo havia alcançado "paz com honra. Acredito que é paz para o nosso tempo", Winston Churchill formulou o célebre comentário:
“You were given the choice between war and dishonour. You chose dishonour and you will have war.”
“And do not suppose that this is the end. This is only the beginning of the reckoning. This is only the first sip, the first foretaste of a bitter cup which will be proffered to us year by year unless by a supreme recovery of moral health and martial vigour, we arise again and take our stand for freedom as in the olden time.”
2 Em documentos à parte, a China e a França, como potências nucleares, também deram garantias.
3 De acordo com o relatório, outros grupos participaram também: as Brigadas Ansar, as Brigadas Mujahideen, as Brigadas Nasser Salah al-Din e as Brigadas Mártir Abu Ali Mustafa.
4 O relatório de 236 páginas, I Can’t Erase All the Blood from My Mind’: Palestinian Armed Groups October 7 Assault on Israel (“‘Não consigo apagar todo o sangue da minha mente’: ataque de grupos armados palestinos à Israel em 7 de outubro”, em português), documenta várias dezenas de casos de graves violações do direito internacional humanitário por grupos armados palestinos em quase todos os locais dos ataques a civis no dia 7 de outubro, incluindo os crimes de guerra e crimes contra a humanidade de assassinato, tomada de reféns e outros graves abusos.
5 Véronique Campion-Vincent et Christine Shojaei Kawan, Marie-Antoinette et son célèbre dire: deux scénographies et deux siècles de désordres, trois niveaux de communication et trois modes accusatoires, Annales historiques de la Révolution française, 327 | janvier-mars 2002, mis en ligne le 21 mars 2008, consulté le 05 février 2025.