Perante um passado histórico conturbado é impressionante observar como o samba deambula atualmente pelas ruas de Lisboa. Um movimento que surgiu no morro e que hoje “o tio Sam”, (BRASIL PANDEIRO, 1940), o turista que tem curiosidade pela batucada e até diz que “o molho da baiana melhorou seu prato”, vê o samba como parte da cultura brasileira. Ao chegar a um botequim na capital lusitana, ouvir um samba, ver as camisolas dos times brasileiros, observar os pares de chinelo e a cervejinha na mão, a saudade quase se esvai, pelo menos por algum tempo. Pode-se dizer que há um pedacinho de Brasil em Lisboa, e essas brasilidades são claramente percebidas nas entrelinhas.
O samba em Lisboa demorou a desenvolver-se e ainda hoje continua a ganhar visibilidade. Em 1985, quando Tercio Borges chegou pela primeira vez a Lisboa, a música popular brasileira, de maneira geral, ainda não era fortemente reconhecida. Esta grande personalidade do movimento de samba da Lapa carioca saiu das rodas do Rio de Janeiro, onde aprendeu com os grandes Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, João Nogueira, Jair Rodrigues e tantos outros, e veio parar a Lisboa, onde, como ele mesmo diz, "tudo era mato”. Na segunda vez, em 1992, já havia alguns músicos de MPB que faziam samba no estilo bossa nova, diferente do samba carioca.
Em 2001, Tercio mudou-se para Lisboa. Nessa época, o samba ainda não tinha evoluído desde a MPB. No entanto, havia um grupo de amigos que se reunia para o batuque no Zoológico. Em 2004, o compositor e instrumentista abriu uma casa de espetáculos chamada Carioquinha, atualmente onde fica o Samambaia. Vários encontros eram realizados nesse espaço. Em 2006, o Sombrinha, famosa dupla de Arlindo Cruz no passado, veio a Portugal. Consequentemente, tiveram que organizar um grupo para acompanhá-lo. Foi desses encontros que surgiu o grupo mais antigo do samba de raiz em Lisboa: "Os Democratas do Samba". Eles tocaram em programas televisivos e diversos festivais nacionalmente reconhecidos, além de terem recebido grandes personalidades da música brasileira como Jair Rodrigues, Casuarina, Diogo Nogueira, Elen de Lima, entre outros.
Em 2010, as pessoas ainda estranhavam o formato do samba, por ser tocado em roda e não em um palco. Somente por volta de 2017 é que o movimento começou a ganhar maior visibilidade, com o aumento do número de imigrantes em Portugal. Hoje, cerca de 14 grupos se reúnem aos domingos no Cais do Sodré e em Alcântara. Conversei com alguns músicos e sambistas de Lisboa e percebi que seria egoísta não compartilhar a variedade e riqueza da identidade brasileira que existe aqui. Para acompanhar de forma mais precisa as agendas de cada grupo, vale a pena segui-los através das suas redes sociais.
Bartô
O Bartô é um lugar onde se apresentam vários artistas do Brasil, de Portugal e do mundo. A história do Bartô foi uma das consequências do desenvolvimento do samba aqui em Lisboa. O espaço é gerido por Tercio Borges, com o intuito de receber seus amigos músicos e promover a música brasileira. "O Bartô é como se fosse uma extensão da minha casa", afirma o cavaquinista. É um espaço com uma programação variada ao longo da semana. Às segundas-feiras, é dia do "Clube do Choro"; às quartas e sextas, são os dias do samba de roda.
Viva o Samba
Uma grande família iniciou este projeto em 2015, às margens do rio Tejo. Com o intuito de promover a música brasileira e divertir-se com amigos e família, o Viva o Samba já teve a presença de vários artistas influentes como Moacyr Luz, Wanderley Monteiro, Pretinho da Serrinha, e também na música portuguesa como Ana Moura, Antonio Zambujo, Carminho, entre outros. O grupo é composto por 12 músicos fixos; as rodas do Viva o Samba acontecem todos os domingos, no Titanic Sur Mer, por volta das 21:00h.
Samba Colaborativo
Em abril de 2019, surgiu este grupo conhecido como Samba na Praça, com o objetivo de promover a arte de rua. Atualmente, é realizada uma curadoria pelo responsável do evento Júlio Brechó, que combina e une diversos músicos para a roda, que geralmente ocorre aos sábados às 16:00h, no Jardim Roque Gameiro, no Cais do Sodré. Não há um critério muito rígido a ser seguido; a intenção era fazer algo fiel e espontâneo do samba, onde as pessoas se reunissem para pagodear. Existem outras vertentes do samba presentes neste projeto, como choro, samba baiano, samba afro e samba jazz.
É importante citar que após a pandemia o projeto perdeu o licenciamento, ainda assim, segue em forma de resistência. Há uma petição pública online para que o projeto possa seguir promovendo maior suporte aos músicos e para que haja o reconhecimento do movimento para a comunidade brasileira.
Samba Camões
Nascido do desejo de evidenciar e trazer ao grande público o samba de raiz, com origem no partido alto dos morros, da Bahia, do Rio de Janeiro e do samba miudinho do terreiro, o Samba Camões tem como propósito unir as matrizes do samba e a poesia, daí o nome “Camões”, em homenagem ao grande poeta português. A ideia de mesclar toda essa ancestralidade brasileira à manifestação poética da língua portuguesa é uma extensão da arte de versar proveniente do samba. Os encontros ocorrem aos domingos, às 17:00h, na Petiscolândia.
As fronteiras do samba são vastas e complexas, com influências de ritmos como maxixe, lundu, chula, polca, mazurca, minueto, entre outros. Embora seja difícil abordar o período de escravização, é crucial para entender a origem desse estilo musical. Imaginem as batidas dos pés no chão e no próprio corpo que ecoavam nas senzalas. Era uma expressão tão poderosa que conseguiu atravessar toda a opressão, persistindo ao longo do tempo até os dias atuais.
Após a abolição da escravatura no Brasil, muitos negros libertos partiram para o Rio de Janeiro em busca de trabalho e uma vida digna. Infelizmente, não houve medidas eficazes para inseri-los na sociedade naquela época. Eles enfrentaram dificuldades para conseguir terra para morar e foram marginalizados pela sociedade da época. Sem ter para onde ir, muitos negros foram obrigados a se estabelecer nos morros, onde era difícil construir algo devido ao terreno irregular e acentuado.
Qualquer manifestação cultural relacionada aos negros, como capoeira, religiões de matriz africana e o próprio samba, era marginalizada. Essas expressões culturais eram vitais, pois promoviam a convivência entre pessoas marginalizadas. Os frequentadores dos sambas eram principalmente ex-cativos, boêmios, operários e capoeiristas, além de outros indivíduos socialmente malvistos. Esses encontros ocorriam nas casas e terreiros das chamadas “vovós” e “tias”, mulheres originárias da Bahia que recebiam as pessoas com muita bebida e comida.
Rapidamente, algumas dessas casas se tornaram famosas e receberam nomes das primeiras grandes personalidades do samba, como Pixinguinha e Donga. No entanto, devido às reformas urbanísticas, essa população foi empurrada literalmente para as regiões periféricas do Rio, espalhando ainda mais essas festas. O samba era visto como uma expressão cultural das favelas e, por isso, foi fortemente perseguido e vigiado pela polícia. O que popularizou o samba foram os primeiros desfiles de carnaval por volta de 1930.
O tempo que o samba viver, o sonho não vai acabar.
(Luiz Carlos da Vila – O sonho não acabou)