Desde criancinha que oiço as mais variadas versões da estória do Blimundo, mas considero a versão que escolhi a mais bonita e pertinente.
Resumidamente a estória conta-se assim: era uma vez Blimundo, um boi forte negro e lindo, que trabalhava para o rei, trapichando sem cessar num magnífico trapiche; Blimundo apaixona-se pela Codezinha do Rei, mas resolve fugir quando vê que é sobre explorado e o seu amor não é correspondido. Sem o boi, o rei perde a sua principal fonte de riqueza e furioso manda os seus soldados capturarem Blimundo, mas em vão, pois são todos derrotados por este. Então o rei que sabe que Blimundo gosta de música e da sua Codezinha manda um emissário que é um tocador de cavaquinho prometer-lhe a liberdade e a sua codezinha em casamento caso volte para o palácio.
Apaixonado e seduzido pela música, o boi portentoso volta com o tocador de cavaquinho mas é logo mandado prender pelo rei. Blimundo vê que caiu num logro e quando a Codezinha vai visitá-lo no curral onde está preso ao trapiche, uma lágrima de tristeza cai-lhe dos olhos. Condoída, a Codezinha abraça-o e beija-o na face. O boi transforma-se então num lindo mancebo negro e forte por quem a bondosa Codezinha se apaixona. Casam-se, têm muitos filhinhos e vivem felizes para sempre.
Esta minha versão tem a seguinte leitura: em linguagem metafórica, o Blimundo é o africano escravizado trazido do continente para as ilhas onde era a principal força de trabalho; o rei simboliza o colonizador; e a Codezinha do Rei é a mulher branca do reino despreconceituosa que se casa ou se cruza com o homem negro dando origem à mestiçagem.
Os filhos do Blimundo e da Codezinha do Rei mais não são que os crioulos que somos nós, mulatos e mestiços. Lendo a estória do Blimundo e fazendo a sua interpretação, os filhos dos filhos dos nossos filhos poderão sempre saber donde vem este povo mestiço que habita as ilhas.
Contudo, o mito vai mais longe. Explica porque no arquipélago se formou uma sociedade única mestiça, com interpenetração entre brancos e pretos que vindos, ambos, de fora aqui se encontraram e se cruzaram; e que tanto nos distingue de outras sociedades, onde brancos e negros formaram cada um o seu gueto e mutuamente se excluíram, como por exemplo na África do Sul do Apartheid de triste memória.
Em Cabo Verde os aportes culturais trazidos pelos europeus e pelos africanos cedo começaram a misturar-se dando origem a uma cultura original e diferente quer da trazida por uns quer da trazida por outros. Foi assim que, antes do dobrar do século XV, que tinha assistido ao achamento e povoamento de Cabo Verde, já se falava nas ilhas o crioulo, língua resultante da fusão do português com os falares das diversas etnias que povoaram as ilhas, entre elas Wolofos, Lebus e Serees. Também o milho usado inicialmente na alimentação dos africanos cedo se converteu no prato nacional de todos os habitantes das ilhas.
O crioulo e o milho são traços marcantes da identidade cabo-verdiana e por eles se vê como nas ilhas houve fusão de culturas, com naturais preponderâncias é certo, mas não justaposição, como aconteceu em outras paragens.
Para mim, isto só se explica a partir do tipo de cruzamento que nestas ilhas se verificou, de europeus e africanos, ambos vindos de fora, que tiveram de se adaptar ao difícil ecossistema das ilhas e deram origem a um verdadeiro povo mestiço dotado de uma cultura crioula.
É certo que esta mestiçagem também resultou do cruzamento forçado e violento do senhor branco com a sua escrava negra, ou do homem negro com a mulher branca, ou, ou, ou...
Mas este é o prosaico quotidiano…
Notas
1 Máquina usada para espremer a cana de açúcar.
2 A filha mais nova.