A casa da saudade é o vazio
o acaso da saudade fogo frio
quem foge da saudade, preso por um fio, se afoga em outras águas, mas do mesmo rio.

(Lenine)

Em Rosa1, tudo de mais lindo e sublime viceja. O estupor dos conflitos, a densidade das figuras, a experimentação estética com a língua falada em diferentes cantos de diferentes Brasis profundos, o modo de tecer situações a princípio tão distantes de nós e, ao mesmo tempo, imensamente próximas. Flor que desabrocha a cada passo da narrativa, flor de ser, florescer de inesperados. Rosa de ler, de emocionar e de viver. Presença que carreia e sempre convida a adentrar (de novo e mais uma vez) uma velha e inaugural vereda. Há muitas neles, o sertão, Rosa e a vida.

Nesse escrito, o autor do romance magistral e de vários contos de morar cede espaço ao dizer do vovô Joãozinho. No varejo da vida comezinha, ao enviar cartões postais e cartas para as netinhas Vera e Beatriz Helena Tess, o sublime da intimidade familiar se dá a ver. O diálogo com um traço infantil delas (e dele) é bordado. Os desenhos, as palavras e as brincadeiras aparecem coladas, não apenas ao papel lindamente colorido com letra elegante, escrita com canetinha e lápis de cor, mas sobretudo instalam um modo de inscrição desse sujeito em uma posição pouco usual. No livro Ooó do vovô!: correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess2, o brincar dele é de delicadezas.

image host Desenho no livro de correspondências de João Guimarães Rosa3

Os desenhos retomam e criam narrativas para os intervalos de férias escolares em que as netas ficavam no interior (aqui vale a polissemia do termo). Na velocidade dos impressos enviados pelo correio convencional, as novidades reclamavam por atualização e tardavam a chegar; eram os espaços de lembrança que careciam de bordado, atiçando o desejo do reencontro. Tudo isso, somado à saudade como promessa, marca um jogo de presença e ausência lindamente escrito. Impossível não lembrar de Freud4 diante de seu neto a jogar e recolher a linha do carretel, um ioiô, e a emitir o som aparentemente sem sentido fort-da. A ausência da mãe fora transformada em um brincar de fonemas, ainda não língua estruturada, combinado com o gesto de ver sumir o brinquedo e fazer aparecer de novo na sequência. Isso produzia um modo de elaborar o vazio, espiralar uma produção em torno dele e o cantarolar tal ausência, sussurrava um grunhido a condensar o balbucio para suportar o ir e vir. No tocante ao uso de sons para espantar a impermanência de seus objetos de amar, Freud e Rosa estão de acordo, cada um a seu modo. Ah, esses vovôs tão sabidos na escuta e na escrita!

image host Desenho no livro de correspondências de João Guimarães Rosa5

No caso de Rosa (acima desenhado por ele mesmo), o contar da saudade e das cenas vividas soma-se ao cantar de músicas do cancioneiro infantil. Como pode o peixe vivo?: conto e canto, apenas uma letra diferente na fronteira tensa dos (des)encontros. Brincam aqui os desenhos entre palavras, espalhados e desconexos sem a necessidade de nenhuma costura entre eles, como a levantar uma bandeira sem mastro, um balão sem fio ou mão solto no ar da ternura. A voz do vovô flui e desdobra-se, desliza e embrenha-se entre desenhos do peixe chorando, da menina tocando violão, dos corpos dançantes e da pessoa no barco. Ademais, os sons próprios apenas ao universo do avô e da neta - essa rede significante partilhada apenas entre ambos – saltam nas formas de nenen bitel, aínha ouca, edó e 2-nenén. Diante do padecimento do leitor na tentativa de atribuição de sentidos, resta o deleite de escutar tão somente a instância brincante de algo que ainda não é língua cujos fragmentos mínimos indiciam a bricolagem de amor. Algo aqui aponta a lalíngua (conceito de Lacan que será explorado mais adiante) primordial na constituição do sujeito.

image host Desenho no livro de correspondências de João Guimarães Rosa6

O ritmo da música escrita, dos diálogos cortados, das abreviações e dos desenhos marca a pulsação criativa do vovô em seu aspecto carinhoso e brincalhão (...) sente-se atraído pelo universo infantil, põe de lado seus inúmeros afazeres, e (...) conversa, quase monologa, e desenha, com uma constância comovedora.7

image host Fotografia e desenho no livro de correspondências de João Guimarães Rosa8

Tingidas por cores, o que se lê são onomatopeias, sons desconexos, reduções de nomes a letras, instalando uma pulsação ligeira. Incrível o modo como o avô diz da posição que considera o mundo de fala infantil da sua própria neta (e só dela, e só para ela), a sintaxe do diálogo curto com ela, enfim, merece tinta a singularidade de uma voz que lhe é amor. Eis o jogo acústico das primeiras inscrições da netinha Tess na língua que Rosa carreia o seu modo de lhe endereçar histórias e saudades. Sobre isso, no prefácio Meu avô Joãozinho, Tess9 afirma:

Demorei a falar (por pura preguiça, diziam), limitava-me a apontar para os objetos que eu queria pegar, chamando-os de ‘ooó’. Daí meu avô carinhosamente chamar-me de ‘ooó do vovô’. Nos cartões e nas anotações ele recriava um universo completamente familiar para nós dois, reproduzindo sons, imagens, objetos e personagens, numa linguagem sedutora.”

A singularidade desse “ooó” comparece em quase todo o material como assinatura da presença da neta. O uso das aspas marca certa ordem de diferenciação, ou seja, o afastamento do avô a marcar o lugar dela posto à moda de citação, mas entremeado com o quanto ele mobiliza a língua para quebrá-la. O som dela com ele, na voz dele. Do puro som de nada (ou de tudo o que Verinha consegue sinalizar) para a nomeação dos objetos do mundo: essa é a seta e a direção fundamentais.

image host Desenhos no livro de correspondências de João Guimarães Rosa10

Notas

1 Rosa. G. Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2003.
2 Tess, V. Meu avô Joãozinho In: Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2003.
3 Rosa. G. Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2003.
4 Freud, S. Além do princípio de prazer. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio Janeiro: Imago. [1920] 1996.
5 Rosa. G. Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2003.
6 Rosa. G. Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2003.
7 Candido, A.; Mindlin, J. Prefácio In: Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. p. 13, 2003.
8 Rosa. G. Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2003.
9 Tess, V. Meu avô Joãozinho In: Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2003.
10 Rosa. G. Ooó do vovô! : correspondência de João Guimarães Rosa, vovô Joãozinho, com Vera e Beatriz Helena Tess. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte: Editora PUC/ Minas; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2003.