Certas situações acontecem diante das quais nada pode ser feito: morte e perdas por exemplo. É muito difícil aceitar o que nos lesiona ou nos destrói (só sabemos do que nos destrói, do que nos mata, por antecipação), assim como é difícil aceitar o que pode destruir outros, amados e considerados, que conosco convivem.
Tragédias e acidentes existem e deixam resíduos na mente, corpo e coração. É a condição humana, são os percalços da trajetória do ser no mundo. Atitudes diversas podem ser tomadas em relação a esta realidade. Podemos aceitar o irremediável, a impotência, ou viver sempre na expectativa de que alguma mágica, algum decreto, alguma intervenção divina possa mudar tudo. A superstição, tanto quanto acreditar no impossível, são maneiras de mascarar o inevitável, adiando assim o desespero, mas antecipando a insegurança. Esta atitude mágica transforma o desejo - o que se quer - em possibilidade e se imagina alguém capaz de atendê-lo (Lacan, no conceito do Sujeito Suposto Saber, comenta esta questão). A melhor maneira de entender os deslocamentos mágicos é através do conceito de não aceitação da realidade, de não aceitação da impotência frente ao que acontece.
Outro dia li que quando Houdini, o mágico, em turnê nos Estados Unidos, estava fazendo uma demonstração em New York, a atriz Sarah Bernhardt - naquele momento uma das atrizes mais famosas do mundo (1916) - foi assistí-lo. À época, Sarah Bernhardt já estava sem uma perna (tinha sido amputada devido a um acidente no teatro, no Rio de Janeiro). A atriz ficou tão maravilhada com as mágicas feitas por Houdini, com o impossível atingido e realizado, que, em um grito de desejo mágico pediu “Sr. Houdini, quero a minha perna de volta! Por favor, faça isto”. Em entrevista a jornalistas, Houdini confirmou a conversa que teve com ela, acrescentando: “She honestly thought I was superhuman”. Este acontecimento deixa clara a ligação entre desejo e magia, isto é, a atitude de onipotência gerada pela transformação do que ocorre em função de ideias fixas a atingir.
A não aceitação da realidade leva à não aceitação como pessoa, como ser social, surgindo, assim, omissão frente às demandas (não vivência do presente). Desta não aceitação surgem falta de iniciativa, medo, estabelecimento de metas, ilusões de mudança, enfim, não aceitação do sentimento de incapacidade frente às situações presentes que ultrapassam as condições de ação. A não aceitação da impotência, não aceitação dos limites impossibilitadores enseja sonhos de transformações mágicas, cria expectativas que, por mais flutuantes que sejam, passam a se constituir em apoio, criando atitudes onipotentes - da fé fervorosa às obstinações irremovíveis. A onipotência é sempre um deslocamento da impotência - dentro de uma visão relacional, não dualista.
A onipotência cria percepções mágicas e estabelece “supostos saberes” que tudo podem resolver, gerando mais expectativa, mais medo, mais dependência. As clássicas soluções para impotência do oprimido através de rezas e ebós (trabalhos para as divindades africanas) são formas mágicas, deslocamentos da impotência, que criam referenciais de onipotência: magia, onde tudo pode acontecer. O desejo é o tapete mágico que leva a outros universos, sincroniza referenciais em função das próprias dificuldades e carências.
Esperar o salvador da pátria, o príncipe encantado, pode ser a dedicação de uma vida que, assim devotada e enclausurada, nada percebe do que existe à sua volta. Esta atitude estabelece estruturas propícias a todos os níveis de engodos e mentiras, de crenças e esperanças.