Como é bem reconhecido, o grande poema português Os Lusíadas é uma obra de enorme amplitude. Além de ser de uma estética literária inigualável, contém uma enorme riqueza relativa a vários aspetos, tais como geografia, história, cultura pagã, ciência, astronomia, etc. Nesse sentido, a interdisciplinaridade é uma constante na obra-prima de Luís de Camões (1524–1579?). O poeta soube interligar essas temáticas de forma consistente e musical, com um conhecimento de causa a todos os títulos desarmante. Esta variedade de temáticas serve a composição de forma contextualizada, nunca aparecendo de forma forçada, mas sim ao serviço da exaltação das várias ideias e episódios.
É bem conhecido que Camões era conhecedor do Almanach perpetuum de Zacuto (impresso em Leiria em 1496), dos estudos do grande matemático português Pedro Nunes (1502–1578), do Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama de Álvaro Velho (chegada a Calecute em 20 de Maio de 1498). Nas palavras de Camões,
«Nem me falta na vida honesto estudo,
com longa experiência misturado,
nem engenho, que aqui vereis presente,
cousas que juntas se acham raramente».
(Os Lusíadas, X, 154)
A primeira viagem de Vasco da Gama realizou-se entre 8 de Julho de 1497 e 20 de Maio de 1498. Luís de Camões ainda não era nascido nessa altura pelo que, evidentemente, não participou nela. No entanto, teve uma vida muito experienciada, viajando para o Oriente e participando nas cruas dificuldades da navegação. A sua obra foi publicada em 1572, três anos após o seu regresso do Oriente.
Luciano Pereira da Silva (1864-1926), matemático e lente catedrático em Coimbra (no presente ano, assinalam-se os 150 anos do seu nascimento) estudou detalhadamente a utilização de profundos conhecimentos astronómicos por parte de Camões (figura 6).
A sua Astronomia dos Lusíadas consiste numa série de artigos publicados por Luciano entre 1913 e 1915 na Revista da Universidade de Coimbra. Nesse trabalho, o autor deduz que o Tratado da Sphera de Pedro Nunes se pode considerar a principal fonte astronómica dos Lusíadas, estruturando os argumentos por tópicos astronómicos essenciais como a Lua, o Sol, as constelações, Vénus, etc. É ainda Luciano que demonstra terem sido os portugueses os primeiros a identificarem a nova constelação Cruzeiro do Sul (figura 1). Mais tarde, a Astronomia dos Lusíadas foi divulgada e analisada pelo Instituto Camões, na pessoa de Carlota Simões, da Universidade de Coimbra.
As referências à cultura pagã são especialmente felizes: além da estética das lendas clássicas, a dualidade existente entre todo o tipo de fraquezas e heroicidades humanas e a sua utilização em designações astronómicas é extremamente útil para a construção poética. Neste texto apresentaremos três exemplos astronómicos para que o leitor possa perceber melhor o que queremos dizer.
O amanhecer mais glorioso da primeira viagem de Gama ocorreu no dia 20 de Janeiro de 1948 (figura 2). A armada lusitana estava no Sul de África. Vénus nasce lado a lado com Júpiter (em conjunção, Vénus é Estrela da Manhã durante toda a navegação do Índico) e, pouco depois, nasce Mercúrio. Uns meses mais tarde, em Abril, já depois de ultrapassadas todo o tipo de ciladas por parte dos habitantes locais, o amanhecer dá-se com Júpiter a nascer primeiro para, pouco depois, surgir Vénus, como que apressada «passando avante» atrás de Júpiter. Um episódio sublime do poema consiste na parte em que Vénus, co riso uma tristeza misturada, implora ajuda ao pai dos deuses, em favor dos lusitanos. Ao partir para esse pedido, Camões canta
«A fermosa Dione e, comovida,
Dantre as Ninfas se vai, que saudosas
Ficaram desta súbita partida.
Já penetra as Estrelas luminosas,
Já na terceira Esfera recebida
Avante passa, e lá no Sexto Céu,
Pera onde estava o Padre, se moveu».
(Os Lusíadas, II, 33)
Na altura e local respeitantes a esta estrofe, este «Avante passa» foi algo visível nos céus.
Outra estrofe astronómica lindíssima acontece no Canto V. Atualmente, no Hemisfério Norte, a Estrela Polar encontra-se alinhada com o eixo de rotação terrestre. Durante a viagem de Gama isso também acontecia, de uma forma bastante aproximada. Por esse motivo, o céu parece rodar à sua volta. A Estrela Polar encontra-se na «cauda» da constelação Ursa Menor. Por outro lado, a Ursa Maior é uma das constelações mais conhecidas do Hemisfério Norte. Trata-se de uma constelação grande, com estrelas brilhantes, relativamente fácil de localizar no céu noturno. O par de estrelas Merak e Dubhe são as chamadas «guardas», muito úteis para localizar a Estrela Polar, para onde apontam.
Em certas zonas do Norte, a Ursa Maior é sempre visível. Por exemplo, em Lisboa, é sempre visível. No entanto, à medida que se navega para Sul, deixa de se ver a certas horas da noite. Começa a haver «pôr-da-Ursa Maior», tal como há pôr-do-Sol. O quadro de van Gogh, Noite Estrelada sobre o Ródano (figura 3), onde a Ursa Maior aparece em todo o seu esplendor, foi datado com base no que se sabe sobre esta constelação. O genial artista pintou-o na noite de 18 para de 19 de Maio de 1889, provavelmente por volta das 4 da madrugada, num local onde esta «não se punha».
Há uma maravilhosa lenda relacionada com as Ursas. Calisto, uma linda filha do rei de Arcádia, causava ciúmes a Juno, mulher de Júpiter. Sendo assim, Juno transformou-a em ursa. Um dia, Arcas, caçador e filho de Calisto, sem saber, estava a ponto de cravar uma lança na sua mãe (figura da capa).
Júpiter, piedoso, teve de intervir e transformou Arcas também em urso. Posto isto, mandou Arcas e Calisto para o céu, respectivamente, Ursas Menor e Maior. Juno ficou raivosa e convenceu Neptuno a não deixar que as Ursas passassem da linha do horizonte. Por isso, os povos do Norte têm sempre de as ver. Vejamos como Camões joga poeticamente com tudo isto:
«Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre faz no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, a pesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Neptuno».
(Os Lusíadas, V, 15)
Repare-se a enorme beleza desta estrofe. O poeta localiza a armada lusitana, dizendo-nos que esta já estava num ponto passível de ver o ocaso da Ursa Maior. E faz isso com enorme musicalidade. Ao mesmo tempo, referencia um episódio da cultura pagã, trazendo uma nota de humor, na medida em que a lenda de Calisto é muitíssimo bem-humorada. Finalmente, foca um dos seus objetivos fundamentais, a exaltação dos feitos portugueses. Ao ver as Ursas banharem-se, os navegantes desafiaram os deuses, na medida em que contrariaram a maldição de Juno. Será possível escrever de forma mais eloquente dois versos como os dois últimos desta estrofe?
Sendo altamente subjetivo, em nossa opinião, os versos astronómicos mais impressionantes acontecem já depois da chegada à Índia. Vasco da Gama tem de se entender e negociar com o Rei da Índia. Mas, ainda antes disso, tem de lhe dizer de onde vêm os portugueses. Eis como o faz:
«Um grande Rei, de lá das partes onde
O céu volúvel, com perpétua roda,
Da terra a luz solar co a Terra esconde,
Tingindo, a que deixou, de escura noda»
(VII, 60)
Naturalmente, o grande Rei é o Rei de Portugal. E o céu volúvel diz respeito ao movimento de rotação terrestre. Mas o maravilhoso aparece nos dois últimos versos. Da terra significa terra, chão, solo; a luz solar co a Terra esconde significa que o céu esconde o solo com o planeta Terra. De facto, por Portugal ser o ponto mais ocidental é o último a cair na noite! A estrofe acaba com um arrepiante Tingindo, a (terra, solo) que deixou, de escura noda (nódoa). Certamente um dos melhores trechos de localização da história da poesia humana! (figura 5).
Repare-se na genialidade de tudo isto. Vivemos impregnados de Google e de genéricos de noticiários, cheios de planetas a rodar. Mas, quando Stanley Kubrick fez o seu 2001: Odisseia no Espaço em 1968, com o som de Also sprach Zarathustra de Richard Strauss, não tinha as maravilhosas imagens da Terra vista do espaço que temos hoje. Imagens da Terra a rodar é coisa das últimas três gerações. Os Lusíadas foi concebido no séc. XVI. Será possível não gostar desta obra?