Quem parte na direção Oeste, desde o Recife, para assistir ao espetáculo da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, tem por sua frente 180 Km a percorrer e nesse percurso vai divisando cenários bastante variados...

Saindo do litoral, com suas praias de areia branca, toma-se a rodovia federal BR-232. No trajeto, ainda podem ser vistos alguns vestígios de Mata Atlântica, que já foi abundante num passado distante e cobria cerca de 100Km de faixa de terra, da costa ao interior, à época da chegada dos portugueses... Depois, vê-se serras verdes em transição para uma vegetação rasteira e mais seca e, pelo caminho, a cerca de 120 Km do Recife, passa-se por uma outra “capital”: o município de Caruaru que polariza a economia da região e é conhecido como a “Capital do Agreste”.

De Caruaru adiante, por mais 60Km, pela rodovia federal BR-104 e a estadual PE-145, chega-se ao Brejo da Madre de Deus. Altos montes a perder de vista, muitos deles “recheados” de pedras graníticas de todos os tamanhos... Estamos no Agreste.

Situada num vale, sobre o Planalto da Borborema, a 627m acima do nível do mar, a cidadezinha abriga o distrito de Fazenda Nova, onde os cenários descortinados são outros... Não só a paisagem agreste, com suas gigantescas rochas se destaca, mas a organização espacial de pedras esculpidas e colocadas sobre outras pedras, harmoniosamente, para formar nada mais, nada menos, que uma cidade-teatro. Localizado numa região pobre de recursos, chegamos ao quase inimaginável maior teatro ao ar livre do mundo, no distrito de Fazenda Nova, a “quem” dedicamos este artigo e voltamos a nossa atenção...

O nome do município, dentro do contexto que desejamos apresentar é já bem sugestivo e, como numa anunciação, adianta um pouco do que vamos partilhar... Se o Brejo é da “mãe” de Deus, o distrito de Fazenda Nova, certamente, é do “filho”... E as tantas pedras da região foram a matéria-prima abundante com a qual se construiu essa “cidade”... Uma cidade teatral, cenográfica, na tentativa de reproduzir lembranças do ambiente de uma localidade muito distante, não só no espaço mas, principalmente, no tempo.

A existência do teatro e de tantas outras expressões e representações dos passos de Jesus por todo mundo cristão soa quase como a confirmação de uma profecia a ele atribuída: que seus apóstolos seriam suas testemunhas “em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (Atos 1:8)...

E nessa terra da madre de Deus, esculpiu-se um sonho; o sonho de um visionário; um homem apaixonado pelo teatro e que fez floresecer em pedra, em meio à região do Agreste, um lírio simbólico...

Chegado à região em 1956, Plínio Pacheco, o idealizador do projeto do teatro, conheceu o espetáculo O Drama do Calvário, que era levado pelas ruas do distrito de Fazenda Nova desde 1951, por Epaminondas Mendonça, familiares e amigos e já atraía artistas da capital, ganhando notoriedade.

O gaúcho com formação em Comunicação se encantou com o espetáculo e com Diva Mendonça, filha de Epaminondas, por quem se apaixonou e com quem casou, permanecendo em Pernambuco. O casal passou a se envolver cada vez mais com o espetáculo e em 1962 Plínio teve a ideia de construir a cidade-teatro... No ano seguinte, a construção teve início e em 1967 ele escreveu o texto para a peça “Jesus”, baseada nos registros bíblicos e que conta a história de Jesus desde o Sermão da Montanha até sua Ascensão.

A peça foi encenada pela primeira vez em 1968, numa Nova Jerusalém ainda inacabada. Anos se passaram até que os cenários estivessem todos prontos, principalmente os mais eleborados e monumentais.

Juntamente com moradores da região, quase todos agricultores, Plínio concluiu a construção do teatro, numa área de 100.000m2, com lago artificial e nove cenários: O Sermão, O Templo de Jerusalém, O Cenáculo, O Horto, O Palácio de Herodes, O Fórum Romano, A Via Sacra, O Calvário e O Sepulcro.

Uma muralha com 3.500 metros de extensão, quatro metros de altura e 70 torres, com sete metros cada, foi erguida ao redor da cidade-teatro, protegendo-a. Mas construir o teatro nesse ambiente não foi uma tarefa fácil... Conta-se que houve época em que cerca de 70 homens trabalhavam em uma pedreira, na extração da matéria prima para a confecção de peças e blocos. Tudo de modo rudimentar devido ao pouco desenvolvimento tecnológico então disponível na região.

Eram homens recrutados nas roças, moradores do entorno do teatro que foram capacitados para atuar em cantaria. Foi como transformar o espaço e também pessoas: de agricultores a canteis, a artesãos, alguns a figurantes nas encenações.

Ano após ano, foram sendo aperfeiçoados os recursos de iluminação e som cujo sistema foi totalmente reinstalado em 2010 e ganhou novos reforços de amplificação este ano. A cada ano, novos recursos tecnológicos vão sendo agregados, aperfeiçoando cenas, para deleite de quem comparece.

Este ano, por exemplo, a cena da ascensão, que já utilizava recursos como a elevação de Jesus, ganhou mais um efeito especial: foi utilizado um drone com uma luz azul subindo até cerca de 150 metros, até desaparecer, para simbolizar a passagem do corpo físico para a vida espiritual. Outros efeitos como relâmpagos e tremores de terra no momento da morte de Jesus permaneceram e a “levitação” de Judas na cena de seu enforcamento também.

Não se sabe exatamente onde nasceu essa mania de querer ser qualquer coisa “maior do mundo” aqui por estas bandas de Brasil, mas o fato é que o título é real e, para quem gosta de números, a “cidade-teatro” de Nova Jerusalém, sede da Sociedade Teatral de Fazenda Nova, apresenta-os “encantadores”. E seguem mais dados para os “estatísticos” de plantão: Os 100.000m2 de área equivalem a um terço da área murada da Jerusalém da época de Cristo; nos espetáculos atuam 50 atores e atrizes e 500 figurantes e, na recente Semana Santa, 68.000 visitantes passaram pelo teatro e assistiram às encenações.

Cerca de 400 profissionais compõem as equipes de sonorização, iluminação, maquiagem, contrarregra, guarda-roupa, hospedagem, alimentação, atendimento médico, segurança, administração, produção e coordenação. No período de ensaios e durante a temporada, são servidas 24 mil refeições a atores, figurantes e equipes técnicas e administrativas; 800 peças de figurino integram o guarda-roupa; a instalação de som conta com equipamento de última geração e serve aos nove palcos-plateias, numa potência total de 154.000 watts. Quanto à luz, são 860 refletores a iluminar cenas e plateia, com 1,29 milhão de watts de potência[1]...

Na temporada teatral, as áreas para estacionamento se enchem com dezenas e dezenas de ônibus de turismo, com gente que vem de perto e de longe apenas para assistir à Paixão. Em sua maioria, o público que chega a quase 10.000 pessoas por noite é da própria Região Nordeste, mas o teatro também recebe pessoas de outros estados do Brasil e de outros países. Este ano, estiveram representados 22 estados da federação e seis países e, para esses visitantes são disponibilizados equipamentos de tradução em inglês, francês e espanhol.

Há algum tempo, atores e atrizes de televisão conhecidos nacionalmente passaram a atuar em Fazenda Nova e a cada ano novos nomes surgem. Na temporada deste ano o papel de Jesus Cristo foi interpretado por Igor Rickli, o de Pilatos por Humberto Martins e o de Maria ficou com a atriz Paloma Bernardi.

Após a encenação do sábado de aleluia, esse ambiente único entra em repouso e aguarda mais um ano, até que se inicie uma nova temporada de espetáculos... No período entre uma páscoa e outra, segue funcionando entre as muralhas, como um pequeno oásis, a Pousada da Paixão, que recebe turistas o ano todo e promove eventos como jantares no cenário da Santa Ceia com direito a uso de roupa de cena, passeios na região em veículos com tração nas quatro rodas e trilhas pela Mata do Bitury (reserva com fauna diversificada e resquícios de Mata Atlântica).

Na pousada, as noites são embaladas por apresentações de forró e chorinho e durante o dia os hóspedes podem, simplesmente, descansar nas redes sob as árvores do jardim ou se refrescar do forte calor na piscina. Quem se hospeda durante a Semana Santa também pode atuar como figurante no espetáculo, sentindo ainda mais de perto a magia dessa história contada há 2.000 anos...

Destaca-se nos passeios a visitação ao Parque de Esculturas Nilo Coelho, situado a cerca de 2Km do teatro. Nele, pode-se ver as 37 esculturas em pedra granítica, algumas chegando a sete metros de altura, representando figuras populares e expressões culturais do estado de Pernambuco.

Outro local de interesse no Brejo da Madre de Deus é a Serra do Ponto. Trata-se de um pico com 1.195 metros de altitude. Segundo mais alto do estado, só superado pelo Pico do Papagaio, localizado no Sertão pernambucano, na cidade de Triunfo, com uma altitude de 1.260 metros.

Na Serra do Ponto é possível encontrar as ruínas de uma torre de pedras superpostas (sem argamassa) construída pelo arquiteto francês Louis Léger Vauthier, em 1845. As ruínas do marco, com base quadrada, encontra-se num platô em meio a uma vegetação de bromélias e possui seus quatro lados voltados para os pontos cardeais... Como se vê, há o que se explorar além dos limites das muralhas da cidade-teatro... Caminhadas, ciclismo, montanhismo e, principalmente, ar puro e tranquilidade.

No interior da Pousada da Paixão também encontramos para visitação um espaço muito especial dedicado aos fundadores do teatro, com exposição permanente de objetos pessoais, fotografias, textos. É o memorial composto pela família para Diva (que durante muitos anos atuou como Maria) e Plínio Pacheco.

O fato da temporada durar apenas uma semana e ocorrer somente uma vez por ano pode até soar como um desperdício da cidade-teatro, mas enriquece o drama da Paixão ao conferir ao lugar um certo ar sagrado, como um “templo” da dramaturgia que abre suas portas para uma experiência artística rara. Após ganharem vida e luz para a encenação da Paixão de Cristo, os nove cenários “repousam” até o ano seguinte, sendo utilizados apenas para visitação turística.

A experiência de assistir à paixão é artística, mas a depender da interpretação de quem assiste, de valores que traga num imaginário cristão, pode passar facilmente a uma vivência interior ou mesmo religiosa. Uma peregrinação... Não há como negar que o percurso cansa. Pés e pernas imploram pelas cadeiras inexistentes e até proibidas (para a segurança de todos), enquanto o texto nos pede humildade e resignação... Durante três horas, milhares de pessoas se deslocam de cenário em cenário, assistindo às cenas e ouvindo sobre bem-aventuranças, apóstolos, tentações, condenações, justiça e, principalmente, amor... O público se emociona, aplaude e não é raro se ver alguém às lágrimas.

No último dia da temporada deste ano, a Lua surgiu enorme, amarela, minutos antes do início da encenação. A música e o luar por sobre as serras do lugar deram o tom perfeito e criaram o clima propício para uma viagem no tempo, mas infelizmente, apesar da organização do espetáculo solicitar que não seja usado o flash das câmeras durante as cenas, o projeto de iluminação sofre com os espectadores que não desligam seus celulares e não cessam de filmar e fotografar, impedindo que a plateia permaneça em total escuridão, apenas sob a Lua do céu do Agreste, de modo a valorizar as cenas e produzir o efeito desejado... O que se vê são muitas telas e telinhas acesas, por todos os lados, com pessoas “vendo” cenas inteiras através de olhos eletrônicos, enfeitiçados pelo registro do “fui”, “vi”, “estive”, em detrimento da essência do verdadeiro clima do espetáculo... Algo simplesmente lamentável.

Em algumas situações, o público caminha bem próximo aos atores e atrizes em cena. Essa mobilidade e participação “ativa”, traz a ideia de se estar participando de fato do calvário, com maior realismo e sentimento de ter se transportado através do tempo, para a antiga Jerusalém...

As palavras de Plínio Pacheco demonstram a intensidade de sua relação com Nova Jerusalém: “A vida colocou-me diante da pedra e da figura de granito que é o homem nordestino. Aquele era meu povo, cantando num cenário de sol. Criar a cidade-teatro. Uma cidade de sete portas e setenta torres. Unir fragmentos dispersos da personalidade humana, transformar homens mutilados em seres humanos completos. A força maior levando aos quadrantes da terra a notícia desta epopeia em granito”.

Surgida a partir do ideal desse homem que migrou do distante estado do Rio Grande do Sul para se estabelecer em Pernambuco. Construída de pedra e sonho, a cidade-teatro segue recontando a bela e intensa história da Paixão de Cristo. História tão antiga que se renova na arte de cada ator e atriz e na emoção de cada nova plateia. Ao longo dos seus 48 anos de existência, 3,5 milhões de pessoas já assistiram às encenações na cidade-teatro. Um marco das artes cênicas do Nordeste. Orgulho para Pernambuco e para o Brasil.

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Vídeo completo do espetáculo encenado em 04 de abril de 2015: https://youtu.be/4hOT9yL7GSw