Azagaia foi um rapper conhecido por abordar, nas suas músicas, assuntos sociais e/ou políticos de Moçambique, África e do mundo. A música em pauta foi lançada em 2021 e nela se retracta o realismo social moçambicano, de forma nua e crua e sem requintes nem retoques, com especial enfoque para a guerra na nortenha província de Cabo Delgado, considerada a mais rica em recursos naturais; clama-se, igualmente, pela unidade nacional e se apela à luta pela opressão e consequente liberdade dos moçambicanos.

Para tanto, o sujeito poético começa por enfatizar: “Vergonha na cara limpa-se com cara de Samora” (Azagaia, 2021) — onde consideramos cara de Samora uma metáfora de “dinheiro” — pois, de facto, por dinheiro, todo e qualquer um — (in)digno(?) — tudo faria. Na sequência, frisa: “(…) sangue nas mãos, com as mãos de quem nos explora/ e nos oferece armas para nos matarmos de borla (…)” (Azagaia, 2021).

Aliás, outorgado pela liberdade poética, serve-se da antítese, quando, na mesma estrofe, se opõe ao discurso anteriormente propalado, asseverando: “Ah, não é de borla, custa gás e petróleo” (Azagaia, 2021), como forma de revelar que a guerra em Cabo Delgado, que assumimos ter sido a grande motivação para este motim, cuja motivação são estes dois recursos naturais, também em abundância naquele pedaço de terra de Moçambique.

Para frisar este facto, acrescenta: “(…) custa o sangue de uma província negociada no escritório, e o povo de joelhos (…)” (Azagaia, 2021). Portanto, como consequência disso, está o velório; porém, no caso vertente, segundo atesta o sujeito poético, trata-se de um velório cibernético, virtual, pelo que diz: “(…) assistido no Youtube, lamentado no WhatsApp, condenado no Facebook” (Azagaia, 2021).

Estamos, portanto, perante a representação do realismo social moçambicano, por um lado porque, de forma nua e crua, sem requintes nem retoques, retracta a guerra na nortenha província de Cabo Delgado, considerada a mais rica em recursos naturais e, por outro lado, a precariedade da sociedade, a astúcia, o orgulho e olhar impávido dos governantes, pelo facto de serem uns contra-sociedade, gente que, para Serra (2003:19-20), apud Das Neves (2015), o seu horizonte é o dia a dia, o seu território é o da astúcia, do entre-dois dos sobreviventes.

Vale, por isso, lembrar ao leitor que “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (Aristóteles, 2003).

Na sequência, o sujeito poético riposta ao conceito atribuído aos macabros acontecimentos em Cabo Delgado, quando diz: “(…) terrorismo ao caraças, isso se chama egoísmo” (Azagaia, 2021).

Pelo que, para sustentar esta asserção, convida uma comparação entre os opressores (o Governo e os seus aliados) e oprimidos (o povo moçambicano, com destaque para os residentes em Cabo Delgado), quando diz: “(…) quem usa a latrina não incomoda quem puxa o autoclismo” (Azagaia, 2021), e ainda reforça esta ideia com uma interrogativa directa: “(…) quantos tiveram que morrer para o presidente ser eleito?” (Azagaia, 2021).

Estamos, de facto, perante uma descrição nua e crua de realidades sociopolíticas atemporais que caracterizam Moçambique, na medida em que, num passado recente, aquando das eleições autárquicas de 11 de outubro de 2023, várias manifestações e contestações tiveram como resultado mortes e linchamentos, tudo devido à salvaguarda de interesses partidários.

Para frisar a necessidade da unidade nacional verdadeiramente dita, o sujeito poético incorpora, no seu “Ai de nós”, uma metonímia (através do coro), segundo a qual todas as outras províncias (Maputo, Gaza, Inhambane, Sofala, Manica, Tete, Zambézia, Nampula, Niassa) nasceram de Cabo Delgado, facto que se pode depreender através da História de Luta de Libertação de Moçambique, pois que esta se iniciou em Cabo Delgado, província em destaque na música em pauta.

Na sequência, para frisar a (des)preocupação do governo central moçambicano (situado na cidade de Maputo), da Rússia e América (por que não, igualmente, da Ruanda?) com os dividendos advindos da exploração dos recursos naturais (ou da guerra?) em Moçambique, o sujeito poético assevera:

(…) notícias de Cabo Delgado:
agora dizem que mandaram milícias pra Cabo Delgado
Rússia e América querem comer no mesmo prato
isso também porque em Maputo estás a conduzir um Prado (carro)
a apreciar o rabo da tua colega das finanças
estás a fazer poupanças, estás a fazer crianças

(Azagaia, 2021)

Para reforçar a ideia de despreocupação e actuação em actividades ilícitas, principalmente do governo central de Moçambique, o sujeito poético rebate:

Até quando vão mandar inocentes cortar lenha
nas matas de Mitelela, longe de tudo e de todos?

(Azagaia, 2021)

E, sem deixar de lado os possíveis destinos dos dividendos desta guerra, remata:

Afinal os EUA andam a produzir bons filmes
para virem às nossas costas cometer crimes
e não me venhas com essas de eu não ter votado/ todos de pé em nome de Cabo Delgado

(Azagaia, 2021).

Para concluir a sua expressão de sentimentos com relação a esta situação, o sujeito poético empresta a voz à poetisa Amélia Charton, que redargue:

Ai de nós, povo, ai de nós, patrão
ai de nós que vedamos os olhos, a boca, os ouvidos, até o coração,
ai de nós que fingimos que nada se passa, enquanto o nosso consciente
está bem ciente de que na outra margem algo se passa
ai de nós, povo, ai de nós, patrão
ai de nós que exibimos outras matérias e ignoramos a nossa matéria
não nos opomos, não protestamos, não oramos nem choramos
contamos anos de independência, enquanto
em alguns quarteirões há uma grande dependência
ai de nós se calarmos, ai de nós que comemos guisado e assado
enquanto os outros comem mandioca crua
ai de nós que dizemos cada um por si, Deus por todos,
ai de nós, povo, ai de nós, patrão.

(In Azagaia, 2021)

E nós, igualmente, concluímos a nossa intervenção por intermédio deste artigo dizendo: “Ai de nós!”.

Referência

ARISTÓTELES. (2003). Poética, 7ªed., Lisboa. Volume VIII.
SERRA, C. (2003). Em Cima de uma Lâmina. Maputo: Imprensa Universitária.
AZAGAIA. (2021). Ai de nós. Maputo.