É preciso começar com uma confissão... Havia outro artigo pronto, com temática completamente diversa... Tratava sobre um belo exemplar da arquitetura neoclássica no Recife, e é garantido que o artigo não ficará esquecido num drive qualquer... Mas foi “fatal” ceder em total rendição à magnitude da arte popular do carnaval de Pernambuco. O apelo desta época do ano falou por si e mais alto, abrindo alas e espaço para aparecer... E assim, do comportado Neoclassicismo passamos à explosão da maior festa popular do Brasil, que não pode ser dita em palavras, mas que, se dita, convida a conhecer um pouco da cultura pernambucana...
Quem imagina que pelas bandas de cá a festa se dá em quatro dias, engana-se. Ela não cabe num feriado e extrapola o calendário que tenta aprisionar a folia: começa antes e termina depois...
São semanas de comemoração. Logo após o réveillon, como milho em panela quente, já começam a “estourar” pontos de animação em vários locais. Não dá para segurar. É tempo das chamadas prévias. Bailes, ensaios de blocos de frevo, de maracatu (ambos ritmos musicais populares de Pernambuco), concursos de dança e fantasias e desfiles vários, que vão se multiplicando, numa alegre preparação até os dias do carnaval.
Colorido dizer que o carnaval de Pernambuco é “multicultura”; tão grande a variedade de ritmos, cenas e expressões populares. Mas é o frevo que domina o cenário. Ritmo genuinamente pernambucano, com origens na capoeira. Nas pernadas dadas no ar por “comissões de frente” de capoeiristas de bandas militares. O nome veio da analogia de que, quem dançava, estaria “fervendo”. O frevo é patrimônio imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 2012 e, neste 2015, completou 108 anos de existência.
Há um ano ganhou um ponto de referência e divulgação em Recife. Uma “casa” só dele. Foi inaugurado o Paço do Frevo, um edifício de quatro pavimentos, totalmente restaurado, localizado no centro antigo do Recife. O casarão branco por fora, mas que explode em cores em seu interior, possui exposição permanente de estandartes de diversas agremiações de frevo, objetos e milhares de imagens relacionados à história desse quase “ente” que é dança, é música e é poesia, nas letras do frevo canção.
No Paço, cursos, palestras e apresentações mostram para quem o visita, todas as dimensões possíveis dessa expressão popular, sem dúvida a maior expressão do estado de Pernambuco. O espaço é dedicado à difusão e pesquisa do frevo. Engloba escola de dança, escola de música e centro de documentação.
O frevo é tocado, dançado, cantado... Possui três modalidades diferentes entre si: o frevo de rua, o frevo de bloco e o frevo canção. O frevo de rua, mais conhecido simplesmente como frevo, não possui qualquer tipo de letra. É totalmente instrumental. Feito exclusivamente para dançar. Foi o primeiro a surgir. Nele, predominam instrumentos de metal, como trompetes e trombones. O frevo de rua mais famoso é o “Vassourinhas”, de autoria de Matias da Rocha; que se tornou um pouco “a cara” do carnaval de Pernambuco. É aquele que toca nas chamadas dos telejornais; o que imprimiu uma marca e se fez referência do lugar. Está para o Recife como para a vizinha cidade de Olinda está o frevo canção “Hino de Elefante”, com seu refrão: “Olinda, quero cantar, a ti esta canção...”, que se ouve da multidão de foliões que, em uníssono, repete-o incansavelmente, de braços para o ar, pelas ladeiras históricas.
O frevo canção se assemelha às marchinhas do carnaval do Rio de Janeiro, com uma introdução instrumental e uma parte cantada. Já o frevo de bloco, surgiu das serenatas, do carnaval de rua e possui letra. São comuns os blocos de nomes românticos, como o Bloco da Saudade, o Cordas e Retalhos, o Bloco das Ilusões; com integrantes que se apresentam belamente fantasiados, acompanhados por bandas de cordas e sopros, num lirismo que encanta. Mulheres, homens, crianças, numa única fantasia... É comum ver a plateia cantar acompanhando e batendo palmas ao compasso das melodias, juntando-se aos integrantes do bloco, estabelecendo-se uma harmonia que expande sua dimensão e unifica seus integrantes com a multidão que o segue ou contempla.
E o Maracatu? Ah! Este é presença marcante e abre oficialmente a festa popular do Recife, na sexta-feira de carnaval (Sim, a sexta é carnaval), numa tradição comandada há 14 anos pelo percussionista pernambucano Naná Vasconcelos. A festa começa com um cortejo de 700 batuqueiros de onze nações de Maracatu, que vai da Rua da Moeda à Praça do Marco Zero da cidade, no Recife Antigo. Lá, os batuqueiros ganham espaço e fazem uma apoteose rítmica. O som das alfaias, tambores, caixas, estremece por onde passa, ecoando pelas paredes e pelas ruas seculares. Mas, de fato, o que mais os instrumentos abalam, em harmonia, é o ritmo do coração. Nem seria demais dizer que arrepia...
A cada edição, Naná traz novos convidados. Este ano, dividiram o palco com ele as cantoras Elba Ramalho, do vizinho estado da Paraíba; Fafá de Belém, do Pará, estado da região Norte do Brasil e, de além mar, a cabo-verdiana Lura, mostrando que o carnaval pode ser a união de culturas. O Clube Carnavalesco Misto Bola de Ouro e o maestro Spok e sua orquestra são os homenageados do carnaval 2015 do Recife e também se apresentaram na abertura do carnaval.
Na manhã do sábado, a festa é sempre do Galo da Madrugada, que já foi reconhecido pelo Guinness Book como o maior bloco da Terra (!). Nove horas de desfile, 30 trios elétricos (os enormes carro-palco que trazem orquestras, cantores e passistas) animando a multidão de mais de um milhão de pessoas. Toda essa festa é simbolizada num ícone gigante: um galo montado numa das principais pontes do centro do Recife, em referência ao desfile do Bloco.
Simultaneamente, em Olinda, e por todas as partes da cidade, agremiações carnavalescas evoluem e arrastam pequenas multidões.
O maracatu, assim como o frevo, também tem suas várias faces. É do maracatu rural que vem um personagem dos mais cativantes e emblemáticos do carnaval do estado: o “caboclo de lança” (pois carrega uma lança colorida cheia de faixas largas, de tecido, nas mãos, com a qual faz evoluções). A estética de sua figura é irrepreensível no quesito originalidade. Criada espontaneamente pelo homem do campo, que labuta o ano inteiro, de sol a sol, nas lavouras, para ganhar a vida e, no carnaval, sai da Zona Rural e se veste de brilho e cor, para ganhar as ruas da cidade... Junto a ele, fazem parte do maracatu rural personagens como reis e rainhas, que lembram homens e mulheres negros escravizados, cortes africanas que deixaram sua terra. O “caboclo” traz o capricho de uma composição fashionista: uma enorme gola ricamente bordada com lantejoulas e paetês, grandes chocalhos pendurados em um volume, às costas, óculos de sol e uma singela flor, à boca. E é esse conjunto, agregado ao seu chapéu brilhante e cheio de franjas, alto e de formato peculiar, que mais o define, além do rítmico som dos chocalhos, que faz ao caminhar.
A maioria dos homens que se trajam de caboclos de lança trazem os vincos do sol e do tempo na pele curtida, mas as crianças também seguem a tradição e há muitos “caboclinhos” acompanhando pais e avós, fazendo a trilha da tradição... Mas ao se falar em caboclinhos, já nos vem outro ritmo, totalmente diferente do frevo e do maracatu, originado das tribos indígenas. E o nome? Caboclinhos! Neste, os tambores cedem lugar a flautas e marcações rítmicas feitas com o som dos próprios arcos e flechas de madeira.
Em Olinda, a homenagem de 2015 foi para o escritor Ariano Suassuna, morto em 2014. O tema do carnaval, “Olinda vestida de sol”, é uma referência direta ao romance do autor, denominado “Uma mulher vestida de sol”. E devemos comentar: Sol é o que não falta nessa festa do Nordeste do Brasil...
Justo é dizer que o carnaval é comemorado em quase todo território brasileiro, mas é nos estados do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco que a festa ganha maior dimensão e apresenta características muito próprias e absolutamente distintas. Muito divulgado e vivenciado por residentes e turistas, o samba no Rio de Janeiro, o frevo e o maracatu em Pernambuco e, em Salvador, no estado da Bahia, berço dos trios elétricos, a música baiana, que inclui também muitos ritmos afro, misturas pop de frevo e outras “batidas”.
E é da vontade de aproveitar o momento, de amar o carnaval e de extravasar outros dias do ano não tão felizes, em que cai o pano da realidade sobre o brasileiro, que a festa extrapola mais um pouco o calendário... Na quarta-feira, já com as cinzas em curso, ainda saem blocos teimosos, em Olinda e Recife. No domingo seguinte ao carnaval, ainda se pode ver alguns blocos retardatários, dedicados a quem esteve trabalhando durante os dias de folia oficial, como policiais e funcionários da limpeza urbana.
Talvez a alegoria utilizada no início deste texto seja a mais adequada para o que significa a sucessão de festas: uma pipoqueira quente (e aberta) explodindo para todos os lados.
Em Olinda, vizinha do Recife, a festa acontece sobre as ladeiras íngremes da cidade antiga, com agremiações carnavalescas serpenteando as ruas estreitas e multidões que as acompanham incansavelmente, por dias e noites. Fantasias muito elaboradas, ou improvisadas ou até incompreensíveis. Hilárias, de todos os tipos e cores, como se diz, “estão valendo”. A intenção é tão somente a diversão... Também não faltam as críticas políticas e as alusões aos fatos jornalísticos de nível local e mundial, tudo com muito bom humor.
Ainda há blocos que trazem mensagens sociais importantes, como o “Nem com uma flor”, do Recife, que traz o tema da não-violência contra a mulher. Há um frevo famoso, de um compositor pernambucano já falecido, o Capiba, cuja letra traz a seguinte frase: “Ouvi dizer que numa mulher, não se bate nem com uma flor. Loira ou morena, não importa a cor. Não se bate nem com uma flor”. E o bloco leva a mensagem cantando pelas ruas e chamando a refletir sobre essa importante temática.
Mas os blocos de nomes brincalhões e “suspeitos” não faltam. Uma criatividade sem par que busca frases de duplo sentido com ou sem apelo sexual, como o bloco “A corda”, que sai cedinho pela cidade alta de Olinda, entrando nas casas, acordando os foliões, muitos deles que quase acabaram de ir dormir, com os integrantes segurando uma grossa corda e gritando “A corda! A corda! A corda!” ... O Bloco “Enquanto isso na sala de justiça” reúne “super-heróis” e “super-heroínas”, com direito a rapel do homem aranha; imaginem, feito na Caixa D’água de Olinda (aquela mesma citada no artigo sobre a Sé de Olinda), em sua performática descida diante de centenas de foliões que apinham a Praça.
E sem querer reduzir o impacto das minhas próprias palavras, é quase impossível não cair na máxima de afirmar que só mesmo vendo e vivenciando o carnaval do Recife, de Olinda e do interior do estado para se poder senti-lo... Como traduzir em algumas dezenas de frases a emoção do carnaval? “Comer um fruto é saber-lhe o sentido”, já dizia Fernando Pessoa, e essa festa popular é como manga que se chupa com gosto, enquanto o caldo escorre pelos cotovelos. O cheiro e o sabor só quem provar pode saber como é. E não é à toa que o slogan do carnaval do Recife deste ano foi, simplesmente: “Nada é igual”.
São milhões de pessoas a passar, não só pelo Recife e Olinda, pois não se pode deixar de lembrar o belíssimo espetáculo das escolas de samba do Rio de Janeiro, por exemplo.
O carnaval, segundo dados do Ministério do Turismo, movimentou este ano valores da ordem de R$ 6 bilhões, o que equivale a três por cento de toda movimentação da indústria do turismo no país. A estimativa é que estejam ainda circulando pelo Brasil cerca de 6,8 milhões de turistas que vieram para o carnaval...
Todos os anos a folia se repete, de modo deliciosamente igual e ainda assim, diferente. Em 2016, ter-se-á mais... Até lá, ficam as lembranças e as multicoloridas imagens da festa.