O ano de 2024 trouxe-me o desafio de lecionar para turmas de anos finais do ensino fundamental em outro estado, um cenário repleto de aprendizados e reavaliações. Comecei com seis turmas grandes: três do sexto ano e três do sétimo. Como educador que admira e se inspira em bell hooks, Paulo Freire e Elisama Santos, e que procura fundamentar sua prática na comunicação não-violenta e no afeto pedagógico, eu me vi, logo nos primeiros meses, no centro de uma contradição inesperada: recebi feedbacks de que estava gritando com os alunos em sala de aula.

Perplexo com a situação, imediatamente compartilhei com minha antiga coordenadora: “Mari, recebi feedback negativo por gritar com os alunos!” A resposta dela foi rápida: “Não consigo imaginar você gritando em sala de aula.” Exatamente a incredulidade que eu tinha sobre mim mesmo. Afinal, o que estava acontecendo?

Eu sabia que estava errado, e sabia disso no exato momento em que o tom da minha voz ultrapassava o limite aceitável. Reconhecer meu comportamento era fácil, mas compreender as razões por trás dele foi um processo mais profundo. Ao ouvir o feedback, aplicado com respeito e cuidado pela minha então coordenadora, percebi que poderia identificar, com clareza, as duas alunas mais atingidas pelo meu descontrole. Eram momentos de exaustão e frustração que se acumulavam e encontravam saída no grito, rompendo com tudo aquilo que acredito enquanto educador.

Na aula seguinte, tomei uma decisão que representava meus princípios pedagógicos: pedi desculpas às alunas diretamente, na presença de toda a turma. Para mim, era claro que, se o grito foi público, o reconhecimento do erro e as desculpas precisariam ter o mesmo alcance. Bell hooks, em suas reflexões sobre o ensino como prática de liberdade, ensina que a sala de aula deve ser um espaço seguro para o diálogo e a vulnerabilidade, inclusive para o professor. Assumir o erro diante dos alunos era uma maneira de trazer honestidade para a relação pedagógica. Essa experiência marcou uma virada: meu relacionamento com a turma melhorou de maneira significativa, embora a vontade de gritar — fruto de desafios estruturais e pessoais — ainda me visitasse em momentos mais delicados.

Elisama Santos, em Por que gritamos, provoca-nos a refletir sobre o que está por trás da necessidade de elevar a voz, seja em uma relação familiar, seja na sala de aula. O grito, para ela, não é só um sintoma do descontrole momentâneo, mas um reflexo das próprias limitações e da forma como lidamos com os conflitos e o ambiente. No meu caso, ele era também o grito de um profissional em adaptação, tentando conciliar expectativas com a realidade complexa de um novo cenário. Reconhecer isso foi essencial para buscar ferramentas melhores, como práticas mais consistentes de gestão de sala de aula e estratégias para lidar com o cansaço emocional.

Paulo Freire, em sua pedagogia do diálogo, também é um guia nesse contexto. Para Freire, ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para sua construção. Nesse processo, a postura do educador faz parte da criação desse espaço coletivo de aprendizagem. Gritar significa romper com essa construção, impor em vez de ouvir, subverter o lugar do diálogo em favor de uma autoridade fragilizada pelo instante de perda de controle.

Essa experiência reforçou algo que tenho aprendido continuamente: a sala de aula é um laboratório de autoconhecimento. Como bell hooks explica, ensinar exige vulnerabilidade, uma disposição a nos desarmarmos e encararmos as dinâmicas complexas de poder, afeto e transformação. Não foi fácil admitir o erro e encará-lo diante de meus alunos. Ainda mais desafiador foi aceitar que o grito, muitas vezes, reflete mais de mim mesmo e das minhas necessidades de cuidado do que das atitudes deles.

Concluir essa jornada não significa dizer que o problema está totalmente resolvido. Trata-se de um aprendizado contínuo sobre escuta ativa, diálogo e paciência com meus próprios limites e com os desafios da sala de aula. O momento em que pedi desculpas aos meus alunos transformou mais do que meu relacionamento com aquela turma: ajudou-me a redefinir, na prática, o que significa ensinar de maneira humana, consciente e pautada pelo respeito mútuo. Como Paulo Freire, Elisama Santos e bell hooks nos ensinam, a educação é, em si mesma, um espaço de reconstrução — e, ao reconstruir a relação com meus alunos, reconstruí também um pouco de mim mesmo como educador e como ser humano.

Referências

Hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
Santos, Elisama. Por que gritamos: como faze as pazes consigo e educar filhos emocionalmente saudáveis. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2021.