Fernando está num café, o de sempre, desde sempre. Nada fora do comum de um dia perfeitamente normal da sua solidão. Desenha uns rabiscos no seu diário enquanto se refresca com uma coca-cola com gelo e limão. “Fernando, tudo bem?”, fala o empregado, “Precisas de alguma coisa?”, Fernando agradece acenando. Olha para o horizonte possível de uma cidade de ruas cruzadas e um céu cinzento de um dia quente de verão. A humidade cai deixando a pele mole e peganhenta. Do horizonte vê e revê os seus pensamentos soprados de um suspiro longo e penoso, é difícil respirar neste tempo quente e abafado.

Assim, começa a desenhar uns traços leves e rectos, usando a sua bebida como modelo, o gelo, o limão, a lata.

O desenho é o que o mantém vivo, presente, um passatempo que relembra o tempo e remonta ao seu eu.

O café não era muito movimentado, mas Fernando tinha por hábito ir para lá desenhar as pessoas que se sentavam, posições, os diferentes corpos. No interior do café existiam alguns dos seus desenhos que fizera no passado.

Era uma segunda casa para ele.

Nesse dia, abafado e cinzento, não havia contrastes de luz, o mundo estava filtrado por uma nuvem que imprimia um tom triste. O calor excessivo desnudava as ruas desertas, apenas Fernando e o staff do bar suportavam aquelas horas moribundas.

O sol pareceu abrir e com ele uma linha diagonal desenhando o prédio na calçada. A varanda de ferro ornamentada e ampliada no chão. Fernando estudava essa linha, observando a varanda deformada que resultava em linhas bonitas.

Do seu lápis começou a reproduzir o que via. A ponta de carvão desmanchava-se na folha deixando um rasto do olhar de Fernando. Sentiu na sua folha um reflexo do sol mexendo-se, a pequena luz dançou pelo caderno até ao seu peito, subindo para a cara e ofuscando-lhe a vista. Coçou o olhar com as costas da mão, o suor escorria-lhe. Pousou o caderno sobre a mesa e deu mais um gole da sua coca-cola. Estava vazia, só o barulho do oxigénio afogado em gelo derretido, ouviu um pequeno riso perto, demasiado perto.

Olhando nessa direcção viu Marília bebericava uma limonada, estava sentada na direcção da linha da sombra do prédio, no seu pulso, uma pulseira brilhava enquanto a mão rodava o copo apreciando-o, a casca de toranja flutuava entre o gelo cristalino, translúcido, invisível; o sol trespassava a bebida e reflectia-se na cara dela. Fernando observa-a com curiosidade, ainda recupera da luz que lhe ofuscou a vista e avista um cabelo encaracolado, uma bola perfeita de caracóis negros, vivos; uma luz no lugar da cara.

Quando recuperou totalmente a visão viu-a: de olhos fechados e movimentos arrepiantes no acto de se consumar a cada gole daquela limonada. Via a garganta dançando ao sabor da bebida. Marília agarrava o copo e chupava mais e mais até que lambeu os lábios carnudos deixando-os cintilantes. Ela, abriu os olhos lentamente e olhou o copo, suspirou fundo e encostou-se ao banco como se o corpo se movesse numa lenta sensualidade. O sol iluminava apenas aquela mesa, aquele corpo longo entregue à luz, uns contornos de pura alegria e satisfação.

O bartender aproxima-se, perguntando “queres mais?” Fernando respondeu um sim lento, ausente, num som que se ouve como ondas do mar distantes.

Fernando, agarra no seu caderno e rasga o primeiro desenho, e recomeça desenhando umas linhas curvas, dançantes e embaladas. O seu olhar estava fixo nela, o lápis preso ao papel desenhava linhas de amor. Junto ao pescoço esguio e comprido um colar de missangas e pedras coloridas, a descontração do corpo e o braço caído balançando levemente. As linhas saem sem supervisão, automatizadas através de cada parte de um corpo crescente de forma no seu papel. Formas desenhadas pelos ventos jovens de um peito ardente, as linhas sensíveis e apaixonadas.

Marília, faz sinal pedindo a conta. Paga, agradece com uma simpatia extasiante. Quando se levanta e atravessa a esplanada a sombra parece clarear-se. Fernando segue-a com o olhar, petrificado na cadeira, uma mão segura o caderno, a outra desenha. A sombra volta em força e tudo voltou a ficar deserto e húmido naquele tom triste de uma nuvem que abraça o mundo.

Fernando, sente como se tivesse nadado em alto mar, a respiração ofegante, sente-se fresco e salgado. Levanta-se rápido e corre na direcção por onde Marília desapareceu. Ao virar a esquina, não vê ninguém à excepção das sombras das árvores que refrescam o ar e a rua. Nada mais conseguiu desenhar, como se o lápis rasgasse um papel molhado e os riscos emergentes se afogassem na sombra da rua.

No dia seguinte, Fernando acordou sorridente, não se lembra do que sonhou, mas algo lhe dava uma vertigem na barriga, uma vertigem fria que arrepiava os seus pensamentos, as suas águas dançantes numa tempestade de sol e música. Levantou-se energicamente e saiu de casa, direcção ao café da rotina. Sentou-se na esplanada, no seu lugar de costume. O dia estava cinzento, uma brisa fresca criava o dia um pouco mais agradável que o anterior, mas não se avistavam os contrastes que Fernando procurava para os seus desenhos.

Pediu uma limonada, queria experimentar; sentia algo de diferente no seu dia: no seu interior tudo se transformava; no exterior, não havia luz, apenas um filtro opaco, sem contrastes, sem luz, nem sombra.

Ao dar um gole da limonada sente o seu gosto, um gosto refrescante, uma ligeira mistura ácida e salgada, o perfume dos óleos essenciais da toranja, o seu corpo saciado e efervescente.

Os olhos fechados abrem-se lentamente enquanto namora o sabor que sobrou nos seus lábios.

“Essa limonada é boa, não é?”, ao levantar o olhar viu Marília

Deu-se um silêncio muito breve, Fernando apercebeu-se do sol que entrava pela esplanada e iluminava toda a rua. Só ela traria aquela luz, os seus caracóis ao sol, a cara em contraluz, um grande brinco de argola do lado direito, um sorriso branco, grande.

“É...” respondeu prolongando a voz tremida por uma vertigem interior.

Marília repetiu o pedido do dia anterior, a limonada da casa; ajeita-se na cadeira, acertando a roupa enquanto se encosta na cadeira.

Recebeu a bebida com uma elegância extenuante, o seu pulso fino, a mesma pulseira reluzente, os seus lábios carnudos aproximaram-se da bebida, os dentes seguram levemente a palhinha e prepara-se para dar um gole enquanto os seus olhos se fecham a uma velocidade cinematográfica.

Fernando via a garganta novamente receber aquele néctar, a boca puxava com suavidade, o gelo dançava criando reflexos de luz. Marília encosta-se novamente na cadeira e deixa o seu braço balançar, enquanto com a outra mão namora o copo.

Hoje, ele tinha trazido os pincéis, as aguarelas, que se molhavam e pintavam o seu vestido florido, a luz reflectida do brinco de argola, a sua pele morena. As sombras criavam uma projecção grandiosa daquela mulher. Ele pintava, e rabiscava aquela imagem fixa e apaixonada.

Quando voltou a si, Marília, estava virada para ele, desabafava o tempo com ventos frescos e provocadores. Enquanto sorria brincava com a palhinha no lábio inferior. Fernando desenhava-a ao pormenor, e, a cada olhar, encontrava sempre algo de novo.

Marília levanta-se, ajeita o seu vestido, justo ao corpo de mar repleto de ondas que molham o mundo de sal e caminha na direcção dele: quinze passos eternos, um gigante que caminha abalando o mundo, a maré alta cobrindo o que resta de praia, o sol queimando-lhe as pálpebras.

Fernando, cordialmente levanta-se oferecendo-lhe uma cadeira a se sentar. Ela estende-lhe a mão “Marília”, diz-lhe; “Fernando” responde-lhe encaixando a sua mão na dela, a pele suave, relativamente fria, uma mão pequena, dedos longos, esguia e elegante. Marília sorri. Fernando sorri.

Falaram durante horas, dias, meses, assim parecia. O tempo era secundário, insignificante. Marília olhava-o nos lábios, humedecia os seus. Quando se ria cerrava os seus olhos grandes, cor de azul. O nariz acentuado, furtivo, a narina desenhada em gancho.

Marília era só luz, as palavras dela doces, o olhar perfurante e perfumado, uma presença olímpica.

Fernando sentia-se pequeno perante aquela grandiosidade de Marília, uma deusa descida à terra, uma estrela caída, cadente. O sol que só ela trazia, vincava as sombras mais bonitas da cidade. Fernando, era sombra solitária e vivia apenas para aqueles pequenos momentos de luz - sem eles, Fernando era pouco mais que nada.

No dia seguinte, Fernando já estava sentado na sua mesa, o seu caderno aberto, a folha praticamente pintada na sua totalidade. Deparava-se com a falta de chão, pintara tudo excepto os pés, a terra, onde tudo se assenta. Toda a sua pintura flutuava como um sonho sem gravidade, irreal.

As horas passaram e Marília não aparecia, o tempo passava e a escuridão cada vez mais escura. A noite apoderava-se do céu tornando o cinzento do dia numa noite clara carregada de chuva. A falta dela tornava a solidão numa tristeza profunda e Fernando não conseguia pintar, não tinha visão, os seus olhos molhados deixaram cair uma lágrima sobre o papel borrando a tinta aguarela.

O café começou a fechar, o empregado começara a recolher a esplanada, quando apareceu um rasgo de luz, laranja, e roxo com tons azuis. Era Marília que surgira numa abertura mínima de luz entre as nuvens carregadas de dor. Fernando levantou a cabeça e viu-a: descendo a rua, pisava o chão de pé descalço, o seu olhar lacrimoso, o seu andar apressado, nervoso. Marília estava mais bonita que nunca, pela primeira vez pisava o chão, mas a luz esgotava-se pelas cores de um pôr do sol de inverno.

Quando se aproximou de Fernando, beijou-o. Não disse uma única palavra. Foi um beijo longo, molhado, intenso de paixão. Fernando fechava os olhos e sentia uma brisa fresca entrar-lhe pelo corpo, um mar salgado de lágrimas que escorriam pelos olhos dela misturavam-se ao sabor dos lábios, das línguas. O seu coração bombeava forte por todas as extremidades do seu corpo, sentia-se ser devorado pelo desejo.

Ao soltar-se do beijo, sentia o sabor de Marília percorrer os sabores do seu corpo.

“Não abras os olhos”, disse-lhe Marília apertando com os seus dedos frios nas suas pálpebras, “Mantém-nos assim, vendo tudo o que os teus olhos fechados traduzem”.

Marília abraçou-o; Fernando segurava-a nos seus braços, os corpos em conjunto, misturando-se de sentimentos. Ela acariciava-lhe a cara, limpava as suas lágrimas molhando-lhe os olhos fechados com a ponta dos dedos, desenhava a sua cara, os seus olhos, o nariz, os seus lábios. Fernando sentia o sabor salgado de um oceano escorrendo para dentro da sua boca; quis abrir os olhos, mas Marília beijou-o novamente: um beijo ardente, mas uma respiração triste, um sabor a adeus, diferente do primeiro beijo.

Fernando sentiu, de olhos fechados, a luz dissipar-se, o beijo afastar-se, o desabraço.

O frio desabou no seu corpo, como uma eterna sombra.

Receoso abriu os olhos lentamente: a brisa da noite soprava fresca e estrelada, as suas mãos ainda seguravam a cadeira, os seus lábios ainda molhados.

O empregado esperara por Fernando, era a última mesa a ser levantada. Levantou-se, constrangido, despediu-se com um aceno e caminhou até casa.

Ao chegar a casa, no seu quarto, estava a tela, pintada, um corpo vestido de cores pastel, um braço balançando relaxado e outro segurando um copo meio bebido, um pescoço esguio, um brinco de argola cintilante, um colar de missangas e pedras coloridas, uma pequena ruga desenhada sobre a escuridão de uma cara em contraluz, o contorno dos lábios, o cabelo, caracóis negros e perfeitos, toda a luz na perspectiva do espectador.

No chão um céu e uns pés descalços pairando sobre uma nuvem.

Fernando, namorou o quadro até adormecer.