A melancolia, enquanto tema literário, possui uma trajetória que inicia na Antiguidade, ao lado das primeiras descrições da própria medicina. Desde as reflexões dos filósofos gregos até as obras mais recentes, o sentimento se entrelaça com questões existenciais, refletindo a fragilidade da condição humana. Ao longo de sua história, a literatura se tornou um espelho das nuances da melancolia, explorando suas causas e efeitos, e revelando como esse sentimento pode ser tanto uma fonte de dor quanto de inspiração.
Em Crime e Castigo (1866)1, por exemplo, célebre obra de Fiódor Dostoiévski, Raskólnikov, o personagem principal, vaga pelas ruas de São Petersburgo após cometer um crime que o assombrará pelo resto do romance. Em um trecho, o autor escreve: "[Raskólnikov] perambulava a esmo. O sol estava se pondo. Ultimamente uma melancolia singular começava a manifestar-se nele. Nela não havia nada de especialmente corrosivo, de pungente; mas ela transmitia algo permanente, eterno, fazia pressentir anos desesperadores dessa melancolia fria, mortífera, uma eternidade "no espaço de um metro". Nos finais de tarde essa sensação costumava atormentá-lo com intensidade ainda maior."¹
A melancolia sentida pelo Raskólnikov tem uma origem muito clara: o sentimento de culpa pelo crime que cometeu. Entretanto, a causa desse estado de tristeza nem sempre é proveniente de um ato tão extremo.
Homero, por exemplo, antes mesmo da melancolia ter sido registrada com esse nome, já transmitia o sentimento em um dos versos da Ilíada, poema épico escrito no século VIII a.C e considerado o marco inicial da literatura ocidental. No canto VI (versos 200-3), lê-se:
Quando também Belerofonte foi odiado por todos os deuses, vagueou, só, pela planície de Aleia, devorando seu próprio coração e evitando as veredas humanas.2
Neste trecho, o autor cita a lenda de Belerofonte, herói da mitologia grega que, muito diferente de Raskólnikov, não cometeu nenhum crime. O herói foi castigado apenas por recusar as investidas da rainha Anteia que, enfurecida, convence seu marido, o rei Proteus, a matar Belerofonte. Vencendo a sua punição, mais tarde o herói é castigado pelos próprios deuses e, não suportando a ira divina, acaba condenado à solidão e à tristeza.
Assim como uma das primeiras citações da melancolia, Homero2 é também um dos precursores a registrar um medicamento contra a tristeza: o phármakon, palavra grega que pode significar tanto remédio como veneno, uma mistura de ervas que aliviam o excesso da bile negra.
A bile negra, inclusive, é o que dá origem à palavra "melancolia". Do grego: Melan (Negro) e Cholis (Bílis), o sentimento tem suas raízes na teoria dos quatro humores, proposta por Hipócrates, considerado o "pai da medicina" e, mais tarde, desenvolvida também por Galeno. Em sua origem, a melancolia era associada à bile negra, um dos humores naturais do corpo juntamente com o sangue, a bile amarela e o fleuma. Segundo a teoria, os quatro humores regulavam a saúde e o bem-estar. E, assim como os outros, o desequilíbrio da bile negra, em excesso ou deterioração, era visto como uma causa da tristeza profunda e da depressão.
Na literatura e na filosofia, a melancolia foi explorada também por pensadores como Aristóteles, que a considerava uma condição ligada à sensibilidade e à criatividade. Durante a Idade Média e o Renascimento, o estado melancólico foi frequentemente romantizado e associado à genialidade, refletindo a ideia de que pessoas melancólicas poderiam ter uma percepção mais profunda da vida.
Entre os séculos XVI e XVII, algumas das principais peças do teatro elisabetano de William Shakespeare foram responsáveis por difundir ainda mais o sentimento da melancolia no teatro e na literatura. A tragédia de Hamlet, uma de suas peças mais importantes, conta a história de um príncipe que descobre que seu tio foi o responsável pela morte de seu pai. A hesitação de Hamlet e as reflexões presentes em seus solilóquios podem ser caracterizadas como uma meditação melancólica.
Já em Romeu e Julieta, a história de amor entre dois jovens de famílias rivais é retratada de forma intensa e marcada por um profundo senso de melancolia. Os dois protagonistas, imersos em um ambiente de rivalidade, se veem tragicamente destinados a repetir os erros de suas famílias, condenados por uma herança de conflitos que parece impossível de superar.
No Brasil, a melancolia é também um tema recorrente entre os autores. A obra de Machado de Assis, por exemplo, está repleta de referências à tristeza. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador menciona a ideia de criar um remédio, um emplasto para aliviar a melancolia humana, que parece ser inevitável e faz parte da rotina, já que, para o autor, "depois do alvor do dia, vem a melancolia da tarde".
Em outra importante obra de Machado de Assis, Dom Casmurro, o próprio título já evoca essa tristeza, visto que a palavra "casmurro" é um adjetivo que descreve alguém rabugento, carrancudo, de temperamento fechado e melancólico. Dessa forma, o título não só retrata a personalidade do protagonista, mas também estabelece o clima da obra, imerso em melancolia, reflexão e indagações sobre as relações interpessoais e as incertezas da vida.
Ao longo dos anos, a tinta da melancolia continuou a preencher as páginas de obras clássicas e contemporâneas. Em Tudo é Rio (2014)3, novela da brasileira Carla Madeira que se popularizou recentemente nas redes sociais, a autora escreve: "[Dalva] caminhava lenta, magra, ombros fechados de quem desistiu. Ninguém sabe ao certo aonde ia. Na hora mais triste das tardes, quando a saudade parece apertar o coração do mundo, Dalva voltava para casa."³ Aqui, a protagonista se vê tendo que enfrentar a complexidade das relações humanas após uma perda trágica e irreparável.
As obras de Dostoiévski, Machado de Assis e Carla Madeira aqui citadas nos mostram outra característica em comum da melancolia na literatura: a associação da tristeza com o crepúsculo do fim de tarde. O fenômeno pode ser explicado pelo ciclo circadiano que regula os padrões de sono ou até mesmo pela sazonalidade e mudanças climáticas. Contudo, para os autores, é no fim de tarde que o mundo parece lamentar e só quem é sensível o suficiente pode ver ele sofrer e, assim, sofrer junto com ele.
Com o passar do tempo, o entendimento da melancolia evoluiu, passando a ser vista como uma condição psicológica mais complexa. Na psicologia moderna, ela é frequentemente relacionada à depressão, levando em consideração fatores biológicos, psicológicos e sociais que podem contribuir para o seu desenvolvimento. A busca pelo entendimento deste sentimento tão complexo contínua e, a literatura, como um reflexo da alma humana, captura as transformações da sociedade, incluindo a busca por compreender o próprio ser humano e o ambiente que o cerca.
Notas
1 Dostoiévski, Fiódor. Crime e Castigo. Tradução de Paulo Bezerra. 8º. ed: Editora 34., 2019. Pág. 432.
2 Homero. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. 1º. ed: Penguin Companhia., 2013. Pág. 191.
3 Madeira, Carla. Tudo é rio. 18º. ed: Editora Record., 2023. Pág. 25.