A Bíblia é um livro, ou melhor, um conjunto de livros formidável em todos os aspectos. Além de trazer vários tipos de narrativa, como a mítica de alguns capítulos do Gênesis; a sapiencial, como no caso de livros como Provérbios, Sabedoria e Eclesiástico; a profética, como nos casos de Isaías, Ezequiel, Jeremias; a apocalíptica, como nos casos de Daniel e Apocalipse; a epistolar, como nas cartas de São Paulo, São Pedro e São Judas.

A histórica, presente em livros como Juízes, Reis, Crônicas; e a evangélica, presente nos quatro evangelhos do Novo Testamento, ela ainda traz uma grande inovação: o modo de narrar.

Para poder fazer referência a essa incrível inovação, é preciso pedir licença a Erich Auerbach, que traz luzes sobre a questão e é imprescindível para entendê-la. Traduzindo de forma bem simples, a Bíblia traz uma narração ao estilo das pinturas barrocas em que luz e sombra se conjugam no mesmo quadro, porém só o que é realmente importante é relatado, uma vez que ela se pretende um livro de uma história milenar. Como bem relata o crítico alemão:

Os pontos culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados; o que há entre eles é inconsistente; tempo e espaço são indefinidos e precisam de interpretação; os pensamentos e os sentimentos permanecem inexpressos; só são sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários.1

A passagem a que Auerbach se refere é o sacrifício de Isaac por Abraão, narrado em Gênesis 22, na qual Deus pede ao patriarca das três religiões do livro que lhe desse seu filho tão amado como prova de fidelidade. E Abraão não lhe recusa, mas Deus poupa o filho da promessa e mantém sua palavra, fazendo sua geração “numerosa como as estrelas do céu”.

Esse modo de narrar é bastante contrastante, por exemplo, com dois livros clássicos, A Ilíada e A Odisseia, ambos de Homero. Utilizando um estilo narrativo de pouca tensão e muita descrição, o poeta grego é formidável no que faz, não deixando escapar detalhes, como mais uma vez nos recorda Auerbach, mostrando que a narração homérica busca:

(...) dar uma forma acabada aos fenômenos, tornando-os palpáveis e visíveis em todas as suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais. O mesmo ocorre com os processos psicológicos: também deles nada deve ficar oculto ou inexpressão. Sem reservas, até nos momentos de paixão, as personagens de Homero dão a conhecer o seu interior no seu discurso; o que não dizem aos outros, falam para si, de modo que o leitor o saiba.1

Nesse caso, os personagens são retratados em sua inteireza, pois sua história é basicamente lendária e justamente busca abarcar tudo sobre o que se relata, como ocorre no trecho abaixo em que Agamenon e Aquiles se preparam para sair em combate.

Assim que pararam de se injuriar com palavras violentas, dispersaram a assembleia junto às naus dos Aqueus. O Pelida dirigiu-se às suas tendas e às suas naus bem-proporcionadas, com Pátroclo, filho de Menécio, e com os seus outros companheiros. Por seu lado, o Atrida fez lançar ao mar uma nau veloz; escolheu vinte remadores e fez embarcar a hecatombe para o deus, assim como Criseida de lindo rosto. Como comandante foi Ulisses de mil ardis. Tendo embarcado, navegaram estes pelos caminhos aquosos. Mas o filho de Atreu ordenou às hostes que se purificassem. E eles purificaram-se, atirando a sujidade para o mar; e a Apolo ofereceram imaculadas hecatombes de touros e cabras junto à orla do mar nunca cultivado. Ao céu chegou o aroma, rodopiando por entre o fumo.2

No trecho é possível perceber uma narração completa do momento (o fim da assembleia, o dirigir-se para as tendas e as naus bem proporcionadas, o juntar-se com os companheiros, o partir da nau, o número de remadores, o comandante da embarcação, a purificação das hostes, a oferta das hecatombes) e até mesmo os epítetos (Pelida, para Aquiles – filho de Peleu –, Atrida – designando Agamenon, filho de Atreu) e o aposto “de mil ardis”, para Ulisses.

Tal estilo jamais faria parte de uma narrativa bíblica. Para tanto, é bom mostrar um trecho de Gênesis 22, como citado anteriormente:

Depois disso, Deus provou Abraão, e disse-lhe: “Abraão!” “Eis-me aqui”, respondeu ele. Deus disse: “Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que eu te indicar.” No dia seguinte, pela manhã, Abraão selou o seu jumento. Tomou consigo dois servos e Isaac, seu filho, e, tendo cortado a lenha para o holocausto, partiu para o lugar que Deus lhe tinha indicado. Ao terceiro dia, levantando os olhos, viu o lugar de longe. “Ficai aqui com o jumento, disse ele aos seus servos eu e o menino vamos até lá mais adiante para adorar, e depois voltaremos a vós.” Abraão tomou a lenha do holocausto e a pôs aos ombros de seu filho Isaac, levando ele mesmo nas mãos o fogo e a faca. E, enquanto os dois iam caminhando juntos, Isaac disse ao seu pai: “Meu pai!” “Que há, meu filho?” Isaac continuou: “Temos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a ovelha para o holocausto?

O nível descritivo da passagem é bastante diferente. Abraão não é caracterizado, Deus, por sua parte, tampouco o é. Importa, no trecho, a ação: ir, fazer o sacrifício, obedecer a Deus. Não se pretende aqui louvar a habilidade de Abraão ou mesmo mostrar como era o lugar onde estavam. A ação se dirige para um fim e é isso o que ilumina o relato bíblico.

A elevação do cotidiano

Uma outra característica da narrativa bíblica é a elevação do cotidiano. A manifestação de Deus na vida humana não se dá em situações especiais, mas justamente na vida cotidiana – o que era impensável na época para um grego.

Nas narrativas gregas, os deuses decidiam os destinos humanos, que serviam como marionetes em suas mãos, mas isso sempre era cercado de um momento especial e se criava, para tanto, uma aura de importância para aquele momento. E, assim como a situação ganhava proeminência, as personagens também tomavam essa feição. Não se louvava o cidadão médio, comum, mas sim os grandes heróis; àqueles era destinado o riso, a sátira.

Por sua vez, na Bíblia, percebe-se que não importa a categoria social em que o homem se inscreva, mas a sua abertura à vontade de Deus, que, para o ser humano, possui um plano de amor e de salvação. Personagens como Pedro (um pescador), Mateus (um cobrador de impostos) ou mesmo uma mulher adúltera ou uma prostituta jamais ganhariam relevo para os helênicos.

Assim, a Bíblia muda não só uma forma de narrar, trazendo mais de um plano narrativo, mas também as personagens que são focalizadas. A partir de então todos podem ser motivo de uma história que tem como foco principal o significado e não a ação.

Muito mais do que uma mudança de foco narrativo, tem-se, com o texto bíblico, a elevação do ser humano a partir do seu fim e não de sua posição social. Assim a Bíblia faz, de certa forma, uma revolução, mas não daquelas armadas ou de mudança social, mas sim, uma revolução na forma de se enxergar o homem.

Notas

1 Auerbach, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2021.
2 Homero. Ilíada. São Paulo: Penguin, 2005.