Os Jogos Olímpicos de Paris decorreram entre 26 de julho a 11 de agosto, mas as suas histórias e personagens ficam marcadas na história por muito mais tempo. Este legado construído pelos atletas é parte do que mantém a chama olímpica acesa. E se os holofotes normalmente brilham mais sobre os vencedores, há participantes nestes Jogos que já eram campeões mesmo antes de começarem as suas provas.

O espírito dos Jogos Olímpicos é este: as histórias de superação, desconhecidas para a maior parte do público, que tornam este evento tão especial. Os caminhos que percorrem para chegar a Paris, os esforços que fizeram e a vida de que abdicaram são a base da força dos atletas. E se todas as histórias de glória olímpica são emocionantes, há algumas que se destacam — podem nem trazer uma lágrima ao olho do leitor (não é isso que se quer), mas conferem uma certa crença na raça humana de que não nos conseguimos alimentar todos os dias.

Esta também é a magia do desporto — a capacidade de nos fazer agarrar a histórias e sentir a dor e felicidade do outro. É isso que se pretende fazer com esta série: trazer histórias, talvez menos contadas por não serem banhadas a ouro ou a outro metal precioso, mas que espelham perfeitamente o espírito olímpico — e já agora, o espírito humano.

As irmãs Hashimi: a escapada até Paris

Início

Fariba e Yulduz Hashimi são duas irmãs afegãs que participaram na corrida de estrada de ciclismo dos Jogos Olímpicos de Paris em 2024. As atletas, que treinam na Europa atualmente, viveram momentos dramáticos no caminho para as olimpíadas.

As duas começaram a andar de bicicleta há apenas 6 anos. Quando Fariba tinha 17 anos e Yulduz 14, as irmãs viram um anúncio para uma corrida local e decidiram participar. Com pouco treino, e com nomes falsos, as irmãs participaram na corrida e terminaram em primeiro e segundo lugar. “E o resto é história” seria, normalmente, a frase acertada — mas o resto é mais que história.

A participação nesta corrida despertou o interesse da Federação ciclista do Afeganistão, que convidou as irmãs para serem parte da seleção nacional. Se foi difícil convencer a família, a comunidade parecia impossível de convencer: “As pessoas insultavam-nos e mandavam-nos pedras na rua, porque usávamos roupas curtas e capacetes”.

Se a situação não era a ideal, no verão de 2021 tudo mudou para as Hashimi. Os Talibã ascenderam de novo ao poder no Afeganistão, proibindo que mulheres pudessem praticar desporto. As irmãs Hashimi, na procura do seu sonho, tiveram de fugir da sua terra. Conseguiram-no com a ajuda da antiga campeã do mundo de ciclismo, a italiana Alessandra Cappellotto, que teve papel principal na fuga das irmãs e na ajuda à adaptação à europa.

Passado pouco tempo depois de chegarem à Europa, o esforço das irmãs viu frutos: as duas foram convidadas a participar na equipa italiana Valcar-Travel & Service Racing Team, do segundo escalão do ciclismo internacional.

Road to the Olympics

Em 2022, as irmãs deram mais um passo na hierarquia do ciclismo profissional — assinaram contrato com a equipa Israel — Premier Tech — Roland, equipa do escalão World Tour (que corresponde à primeira divisão do ciclismo internacional).

Mas na aproximação aos Jogos, problemas burocráticos ameaçaram a participação das irmãs nas olimpíadas: os comités olímpicos de cada país devem selecionar os atletas que participam nas olimpíadas sem qualquer tipo de interferência governamental. Como os Talibã proibiram as mulheres de participar em atividades desportivas, houve pedidos para que o país não pudesse participar nos Jogos Olímpicos.

Mas o comité olímpico internacional estava comprometido com a participação das mulheres afegãs nos Jogos. Em junho, a pouco mais de um mês do início dos Jogos Olímpicos, o comité olímpico internacional anunciou que conseguiu formar uma equipa especial para a representação do Afeganistão nos Jogos Olímpicos — as irmãs Hashimi estariam presentes na equipa de três homens e três mulheres que iam representar o Afeganistão em Paris 2024. Finalmente, o sonho começava.

Fariba Hashimi disse à CBS News:

Nós representamos as mulheres oprimidas do Afeganistão que nem são autorizadas a ir à escola. As dificuldades por que passei deram-me mais força, ajudaram-me a descobrir quem sou e a acreditar nas minhas capacidades — que posso atingir este sonho de participar nos Jogos Olímpicos.

Participação Olímpica e o futuro

Antes da participação na prova de estrada, Yulduz, a Hashimi mais velha, fez história ao participar na prova feminina de contrarrelógio. Tornou-se a primeira ciclista — homem ou mulher — a representar o Afeganistão nos Jogos Olímpicos.

Na prova de estrada, os sonhos de glória olímpica não se concretizaram — as irmãs fizeram parte da fuga inicial da corrida e animaram os primeiros largos quilómetros da prova olímpica, mas os resultados foram humildes: Yulduz não terminou a prova e Fariba terminou na posição 75. A verdade é que seria sempre uma prova muito difícil para as Afegãs, não só pela qualidade de algumas ciclistas presentes, como pelo facto de competirem contra equipas que tinham três, quatro ou cinco atletas (as afegãs eram apenas duas).

Mas a participação olímpica das irmãs vai muito para além dos resultados obtidos: é um símbolo do que se pode conquistar mesmo quando quase tudo está contra nós. E diga-se — as Hashimi não são nenhum caso de caridade. As ciclistas têm corrido o circuito europeu profissional e com ótimas indicações para o futuro, tendo em conta a idade e o facto de praticarem ciclismo há apenas seis anos — lembre-se que competem contra atletas que não só praticam há mais tempo, mas que tiveram melhores infraestruturas e oportunidades durante grande parte da carreira.

Entre as duas, Fariba, a irmã mais nova, destaca-se em termos de resultados: foi oitava na Volta a França do futuro este ano, já depois dos Jogos. Mas as duas já tinham participado em provas importantes do calendário europeu com performances interessantes. Não seria de estranhar, e até merecido, que brevemente pelo menos uma das irmãs desse o salto em termos de equipa e de resultados. E que melhor maneira de mostrar às meninas afegãs que vale a pena sonhar.

David de Pina: KO para a história

Início

David de Pina é um boxer de Cabo-Verde, original da ilha de Santiago, com um sonho e uma história dignas de filme de Hollywood. Agora com 28 anos, o atleta começou a praticar boxe com 15 anos por ser vítima de bullying por outras crianças no bairro em que vive, em Santa Cruz.

A história do boxer nos últimos 4 anos é uma história de esforços e superações — uma das que termina em glória, ainda que não seja no lugar mais alto do pódio.

Tokyo 2020

David fez a sua estreia em olimpíadas nos Jogos Olímpicos de Tokyo, em 2021. Na altura, perdeu o primeiro combate contra o campeão olímpico em título, mas o espírito de David parecia ter crescido com esta participação:

Depois disto, olhei para o ambiente e pensei — Não, estes atletas não têm nada que nós não tenhamos. Dois braços, duas pernas, uma cabeça. Eu tenho o mesmo! É por isto que continuo a andar para a frente, sei que o posso fazer porque o vi com os meus próprios olhos. Estive lá e percebi que podia fazer coisas grandes. Só precisamos de melhores condições para treinar e conseguimos.

As preces do cabo-verdiano foram ouvidas: foi oferecida uma bolsa olímpica de solidariedade ao boxer, que se mudou para Portugal para a aproveitar da melhor maneira. Seria uma aposta ganha — David venceu os campeonatos africanos em 2022 e qualificou-se para os Jogos Olímpicos de Paris 2024 no último torneio de qualificação.

Mas o presente que foi oferecido a David de Pina vinha envenenado: o atleta teve de passar pela maior luta da sua vida no caminho para Paris 2024.

Caminho para Paris 2024

No sentido de melhorar a sua arte, o boxer mudou-se para Lisboa, para treinar no Privilegio Boxing Club, em Odivelas. Para isto, teve de deixar a sua família, e a sua filha de apenas 4 anos em Cabo-Verde:

As coisas não foram fáceis em Portugal. Houve momento difíceis, que me tornaram mais forte.” O dinheiro da bolsa não era suficiente para apoiar a família, e David teve de começar a trabalhar na construção civil enquanto treinava para ajudar a família e ter uma vida decente em Portugal:

A parte mais triste é que por causa do trabalho, não tinha tempo para treinar. Tive de parar de treinar para ter dinheiro para pagar a minha renda”.

Mas o espírito de David — nome simbólico pela luta contra Golias que batalhou — prevaleceu. O boxer aguentou as condições de vida, trabalho e treino que teve em Portugal e apresentou-se nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 como porta-estandarte de Cabo-Verde, uma comitiva que trazia sete atletas para competir nas Olimpíadas.

O boxer, com o cabelo que se destaca pelas parecenças à personagem da Disney — Mickey Mouse — não só chegou às olimpíadas e melhorou o seu resultado de Tokyo 2020, como chegou a um lugar onde nunca nenhum compatriota tinha chegado: ganhou a primeira medalha olímpica para Cabo-Verde. Foi medalha de bronze no boxe, na categoria –51kg, depois de um percurso digno de um guião de um filme.

Dizem que sou um herói porque lhes dei algo que nunca tinham tido antes. Espero que os meus resultados os inspirem a dizer que tudo é possível.