No dia 15 de agosto de 2023, veicularam na mídia internacional diversas notícias sobre a contratação de Neymar pelo Al-Hilal, clube da Arábia Saudita. O jogador brasileiro, que estava no Paris Saint-Germain (FRA), não é o único a seguir rumo ao continente asiático.
Outros atletas que estão ou estavam os holofotes do campeonato inglês, francês e italiano estão partindo em direção ao país saudita. Como exemplo, Cristiano Ronaldo, ex-Real Madrid (ESP), Juventus (ITA) e Manchester United (ING), transferiu-se para o Al-Nassr. O francês Karim Benzema deixou o Real Madrid (ESP) e tornou-se jogador do Al-Ittihad. Roberto Firmino deixou o Liverpool (ING) e passou a jogar no Al-Ahli.
O que estaria por trás dessas contratações de peso universo do futebol? Seria apenas uma inocente tentativa da federação saudita buscando visibilidade para o esporte das quatro linhas com a contração de estrelas? Alguém ou alguma instituição está por trás disso tudo? Esse fenômeno nacional de investimento no esporte já aconteceu em algum momento da história?
A resposta é: o buraco é mais profundo! Nada é por acaso! Existe todo um sistema por trás disso tudo que está acontecendo. E detalhe, isso já aconteceu antes. O termo sportswashing pode ser utilizado quando algum regime autoritário investe no universo do esporte para promover uma imagem positiva e esconder aspectos negativos e até sombrios da gestão.
Não sei se você consegue se lembrar de um cidadão italiano chamado Benito Mussolini, que investiu rios de dinheiro no futebol para utilizá-lo como propaganda política. Detalhe: a Itália ganhou duas Copas do Mundo, em 1934 e em 1938, em seu governo. Há quem diga que o ditador escolheu até os árbitros que apitariam alguns jogos, transformando a Seleção Italiana em um braço direito do governo fascista.
O péssimo aliado de Mussolini, o austríaco Adolf Hitler, também utilizou os Jogos Olímpicos de 1936, disputados em Berlin como tentativa de expressão de um “imaginário positivo” do governo Nazista e de sua ideologia de superioridade da raça ariana.
Durante o Regime Militar no Brasil (1964-1984), a Seleção Brasileira se tornou um espelho do governo vigente. Houve uma interferência dos militares nos esportes. O treinamento tático das forças armadas foi implantado na preparação de nossos atletas, criando assim a proposta de um “futebol-força” que nos levou ao tricampeonato em 1970.
Assim, a crescente ascensão do campeonato saudita na mídia internacional não é um caso aleatório. É algo pensado, arquitetado, orquestrado pelas instituições políticas, econômicas e culturais do país, como veremos a seguir.
No caso saudita, há um projeto que primeiro perpassa pela economia. Segundo o professor José, Doutor em Relações Internacionais pela USP (Universidade de São Paulo), o principal produto que gera capital para a Arábia Saudita é o petróleo. O investimento no futebol faz parte de uma estrutura de investimento em diversos setores do país.
Existe na Arábia Saudita, um fundo governamental de recursos, chamado de Fundo de Investimento Público (PIF), que antes era abastecido pelo petróleo. Por meio do Ministério do Esporte, ele distribui o dinheiro para os clubes de futebol.
O portfólio do PIF foi ampliado e conta com investimentos em empresas das áreas de infraestrutura, tecnologia, energia, farmacêuticas e esportes.
Desde junho de 2023, o PIF passou a assumir o controle dos quatro maiores clubes da liga local: Al-Ahli e Al-Ittihad, ambos da capital Riad, e Al-Hilal e Al-Nassr, de Jeddah, cidade portuária na costa do Mar Vermelho.
O governo, por meio do fundo de investimento é dono de 75% do capital desses times. Esse mesmo fundo patrocina a Superliga Africana e comprou 80% do NewCastle em 2021.
Cabe lembrar que o país não divulga os dados detalhados dos investimentos do clube, o que abre margem para questionamentos sobre o real motivo dessa articulação entre política e esporte.
Outros clubes, além dos quatro escolhidos, são ligados ao Ministério do Esporte e usam renda estatal, mas de forma menos direta e com menores percentuais. No final das contas, o governo controla os times e existem funcionários dos clubes diretamente ligados a monarquia saudita.
Mas o que estaria por trás desse bilionário investimento governamental no futebol? A resposta é: manutenção de poder, melhora da imagem do governo nacionalmente e internacionalmente.
Cabe lembrar que a Arábia Saudita está em conflito armado com o Iêmen desde 2014 e isso não abalou a relação do país com outras nações. A imagem do campeonato nacional veiculando internacionalmente serve como um mecanismo de distração com as notícias de guerra e constrói um imaginário do regime ditatorial árabe como instituição “confiável”.
Internamente, o príncipe saudita busca consolidar sua imagem com a população. Lembrando que desde que entrou no poder em 2015, houve aumento de impostos e as leis religiosas reprimem cada vez mais a população. Desta maneira, ele busca consolidar-se no imaginário popular como um líder que busca abrir as portas do país para a cultura.
Assim, o futebol é uma atualização do contrato social, em que liberdades sociais são dadas a população, mas nunca são distribuídas liberdades que destruam o projeto político e religioso que mantém o país.
Além disto, o investimento massivo no esporte das quatro linhas perpassa pela tentativa de atrair recursos internacionais para o país. Assim como fez o Qatar, é uma possibilidade de mudar a visão de ditaduras que não se importam com direitos humanos e atrair mais turistas, investimentos para o mercado interno e alianças comerciais.
Neste caso, investir nos clubes, nos técnicos, nos jogadores envolve a organização de um mercado midiático que patrocina e transmite os jogos, o que gera renda para o governo. Além disso, há a criação de empregos diretos e indiretos para a população, movimentando a economia saudita.
Mas claro que aqui não estamos apoiando regimes autoritários, mas apenas questionando como eles se estruturam e agem na prática. Esse é nosso papel: não acreditar de forma inocente em tudo que assistimos, ainda mais quando se trata de uma paixão esportiva como a do futebol.
Aos fãs de esportes, apaixonados pelas estrelas que a cada dia são contratadas pelos clubes sauditas, apenas oriento: cuidado! Às vezes uma paixão que mexe com nossas emoções esconde projetos políticos, sociais, culturais, econômicos e violentos. Cabe a nós não fazermos papel de ingênuos.
Será que assistir esse campeonato é contribuir com a manutenção deste governo ditatorial ou é apenas lazer?