Foi um tópico maior da Filosofia clássica, a divergência entre Platão e Aristóteles, entre outras coisas, sobre a causa da opção pelo mal. Platão defendendo que só se escolhe o mal por ignorância, Aristóteles observando que se escolhe por vezes o mal de forma voluntária. As duas posições podem, como quase sempre acontece, ser reconduzidas a uma só, mas o fundo da questão é de facto uma divergência fundamental que nos acompanha desde sempre e até hoje.
Vem esta lembrança a propósito do anúncio (4/10/2023) de atribuição a um grupo de países, Portugal incluso, do Mundial de Futebol de 2030. Apesar da organização não resultar muito clara do anúncio, com jogos de abertura em três países da América do Sul e restantes jogos espalhados entre Portugal, Espanha e Marrocos, a simples candidatura de Portugal era por si só sinal claro da ignorância, e/ou da perversidade, de quem decidiu em Portugal sobre a matéria.
No final do século XX, Portugal conseguiu ser organizador do Europeu de Futebol de 2004, no que se anunciou ser um momento «histórico» (um termo que perde o seu significado a cada «evento») e gerador de enormes «retornos financeiros» (um mantra sempre repetido, tão recentemente quanto as Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa, em Agosto de 2023). Na realidade, o que ficou foi um conjunto de estádios de futebol sem público para os justificar, abandonados, com custos de manutenção desproporcionais ao seu uso, sem sequer se racionalizar o que já havia (em Itália, esse país pobre, Inter e Milan jogam no mesmo estádio da miserável cidade que é Milão, mas em Portugal, Benfica e Sporting não o fazem, certamente por serem agremiações muito maiores).
Estes anúncios, em Portugal pelo menos, são sempre retumbantes de promessas e geradores de correntes incessantes de autoelogio, tanto mais necessárias quanto as contas de cada «evento histórico» e «oportunidade única» nunca se fazem. Sabe-se sempre que os concursos públicos foram viciados, que houve sinecuras aos montes nas «organizações», etc., mas nada muda, passa-se sempre para o seguinte. Será assim também, decerto, com o Mundial.
Ora, quem em Portugal tiver o infortúnio de gostar de futebol (como o autor que aqui se subscreve), ou é alucinado o bastante para confundir o jogo com horas infindáveis de tagarelice televisiva e páginas de jornais (e de redes sociais) a debitar boçalidades e mentiras sobre árbitros, dirigentes, empresários, clubes, etc., num caso permanente de polícia que nunca conhece desfecho nem sequer verdadeira evolução, ou então o melhor que tem a fazer é dedicar-se a ver vídeos no Youtube de Maradona nos seus tempos de glória, ou coisa que o valha. O «gosto pelo desporto» local é gosto pela «bola» e esta, resumindo-se a uma constante troca de acusações e insultos de natureza clubística, resume tudo a um gosto pela arruaça das claques – uns de cachecol na rua a perturbar a ordem pública, outros nos camarotes a debitar bacoquices para as tv’s (uns dizem que é sonho, outros diriam pesadelo).
Isto seria mau, mas não demasiado grave, se não se desse o caso de ser de facto um indicador bastante preciso do que é a «sociedade civil» portuguesa. Num país sem instituições respeitadas, e cheio de gente que se diz «institucionalista», por viver agarrado a salários que lhes são pagos por instituições que já nem aparência têm para salvar, a notícia do Mundial teve todo o destaque que não tiveram as agressões a deputados na via pública, dois ou três dias antes. As agressões não foram de gravidade maior, dirão os «institucionalistas» que julgam que a História é feita pelas escolhas da FIFA. Mas a História de um país faz-se de coisas mais relevantes, mesmo que menos entusiasmantes para a maioria do público. No fundo, a agressão fez parte do espírito de claque que é o alfa e o ómega da política portuguesa (e noutras partes, desde os mediatizados EUA a qualquer obscuro tribalismo de Estado falhado).
Sinal dos tempos, «activistas climáticos» (sem cor política, que apenas interessou aos media no caso dos deputados agredidos) foram também agredidos por condutores quando cortaram trânsito em protesto ambiental, por isso a «acção directa» já nem é um cenário sombrio mas uma praxis diária. Nunca importa a realidade, o que conta é que os «nossos» sejam os que «ganham», não importa de que modo nem a que preço. Por isso, quanto mais se fala em instituições mais se denota a «estrutura de sela» típica de uma sociedade essencialmente autofágica.
Não, a vinda de mais um «evento de escala mundial» etc-e-tal, para Portugal, não é positiva, nem era necessária. É uma opção, e, pelo menos aqui, parece ser voluntária e não tanto motivada por ignorância.
Seja como for, e ao contrário do que pensava Eduardo Lourenço há quase 50 anos (O Labirinto da Saudade), os nossos problemas não se resolvem entre o Minho e o Guadiana; nem o queremos, procuramos em vez disso, exportá-los e, sobretudo, importar receitas pré-fabricadas – os eventos, os fundos europeus, as amnistias das visitas papais, não importa, o que conta é que algo mude para que tudo fique na mesma. Não há instituições que resistam assim, não há vida pública sã que subsista assim, não há sociedade decente assim.
O próximo «caso», salvo interpolação inesperada, está marcado desde hoje (5 de Outubro de 2023): as celebrações do 25 de Novembro. Nada melhor para exibir o vácuo das claques, a violência gratuita (verbal e vamos ver se algo mais, quando este texto for publicado já se terá resposta), a inanidade retórica e sobretudo o completo desinteresse pela realidade. Tanto a realidade histórica (o que foi a data), como a realidade actual (o que dela subsiste hoje). Com a falta de democratas neste país até podiam celebrar o cerco à Constituinte (não é preciso googlar, foi a 12 e 13 de Novembro de 1975). Mas seja o que for, teremos o «debate» usual, moldado à imagem do futebolês nacional. E siga o jogo, até 2030 e mais além!
É bem sabido, nenhum povo é governado melhor do que merece.