No início de 2024, enquanto professor, acompanhei três turmas de sexto ano do ensino fundamental — alunos e alunas com média de idade de 11 anos — em uma visita ao Museu Geológico da Bahia, em Salvador. Durante o trajeto, observei um grupo de meninos muito animados, que conversavam e compartilhavam lanche. Em um dado momento, um deles começou a cantar, e rapidamente os outros o acompanharam:
Quando eu lembro, até me arrepio
A virada era uma missão impossível
Talvez pareça um roteiro de Hollywood
Começa em Paris com o Barça parecendo outro clubeMas o impossível não há
Quando se trata de Barça
E o Messi encontrou um jeito
Pra que alguém salvasse o diaPassou a coroa pro Neymar
Falou: brilhe com ela
Meunier, ninguém te avisou?
Menino Neymar é fera
Menino Neymar é fera.
A letra da música é uma composição do canal de YouTube Futparódias. O conteúdo poderia me passar despercebido, não fosse o tom com que os meninos cantavam: respeitoso e até solene. Havia um claro tom de devoção, especialmente quando repetiam “menino Neymar é fera”. Parecia um louvor. E era.
Essa cena me remeteu a uma categoria de alunos que nomeei a partir de minha experiência como professor no ensino médio: os “advogados de Neymar”. São garotos que sempre defendem o jogador em qualquer situação, seja em sala de aula, quando o mencionam como exemplo prático de algum assunto, ou nos corredores das escolas, quando surgem polêmicas a seu respeito.
A idolatria que esses meninos demonstram por Neymar pode ser analisada à luz da crise de representações discutida pelo filósofo Jürgen Habermas1. O jogador representa não apenas um talento no futebol, mas também um conjunto de valores e aspirações que, em muitos casos, se tornam modelos a serem seguidos por jovens em busca de identidade e sucesso, especialmente se pensarmos no quanto o futebol é emblemático no Brasil. Qual menino não joga futebol em qualquer oportunidade de tempo livre e espaço? Qual menino não sonhou jogar futebol profissionalmente?
A qualidade de Neymar enquanto jogador de futebol — esporte que em si é um fenômeno social complexo, com importante papel na construção da identidade nacional — é transferida de uma admiração técnica a uma admiração mais ampla, enquanto indivíduo. Essa transferência amplifica a importância e relevância atribuída a tudo o que Neymar faz. Mas que tipo de ideais e valores Neymar representa, enquanto ser social e político, para ser tomado como ídolo e exemplo para meninos de 11 anos? E que responsabilidade o jogador se atribui nesse papel?
Habermas argumenta que a esfera pública, onde as opiniões e debates deveriam florescer, enfrenta uma crise em sua capacidade de oferecer representações significativas. A idolatria por Neymar, nesse sentido, pode ser vista como um reflexo dessa situação. A comunicação entre os jovens é frequentemente mediada por ícones midiáticos que não necessariamente promovem um diálogo rico, mas sim uma relação unidimensional, onde a interação se limita à admiração.
A forma como Neymar é apresentado na mídia — como um ícone de sucesso e glamour — reforça a ideia de que a realização pessoal está atrelada à fama e ao consumo. Essa representação, ao ser amplificada nas redes sociais e na cultura pop, contribui para a formação de um ideal que muitos jovens aspiram, mas que pode estar longe da realidade. Habermas critica essa transformação da esfera pública em um espaço dominado por interesses mercadológicos, que distorcem o debate racional.
Além disso, a falta de diversidade nas representações disponíveis é uma questão central. Enquanto os meninos idolatram Neymar, eles também revelam a carência de modelos diversificados e representativos. A idolatria a figuras como ele pode indicar uma busca por referências que muitas vezes não refletem a pluralidade das experiências sociais que eles vivenciam (isso sem contar nas questões sobre masculinidade envolvidas na questão, que deixarei para um próximo artigo).
Nesse contexto, a figura de Neymar se torna um mediador entre os jovens e as aspirações que eles cultivam, mas essa relação também revela a necessidade de um diálogo mais profundo. Os “advogados de Neymar” que observei em sala de aula simbolizam a defesa de uma narrativa que, embora forte, carece de contestação e reflexão crítica. Para que as representações se tornem mais significativas, é fundamental promover um ambiente onde a diversidade de vozes possa ser ouvida e respeitada, em que outros modelos sejam possíveis.
A idolatria juvenil por Neymar é um fenômeno que espelha a crise de representações em nossa sociedade. Através da lente de Habermas, podemos entender melhor como as interações juvenis são moldadas por ícones midiáticos e como isso afeta a formação de identidades e valores. A busca por modelos autênticos, responsáveis e diversificados se torna essencial para enfrentar essa crise e enriquecer o diálogo entre as gerações.
Notas
1 Habermas, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma nova categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Editora da Unesp, 2014.