(-continua)

Continuemos a folhear o diário das interrogações nacionais que Portugal formula, como outros países europeus.

Confiança e cumplicidade comunitárias, da Ética à Legalidade. Numa sociedade cuja mitologia identitária assentava em duas pedras de cúpula ‒ os juramentos de D. Afonso Henriques e de D. João IV (1) ‒ com um feriado a assinalar a Restauração renovadora da Promessa régia à Padroeira e Rainha, assistimos à quebra simbólica de juramento cujos textos prevêem sanção e maldição a quem, da descendência, o fizer (2).

No plano social. Até algumas décadas atrás, a fidedignidade da pessoa, a honra do nome e o valor da palavra eram a base de uma confiança comunitária: declarar e apertar a mão eram verdadeiros e genuínos contratos. Progressivamente, assistimos à necessidade da palavra escrita, da assinatura reconhecida e do acordo com a lei, cumulativos, para que haja contrato reconhecido. O trânsito da Ética para a Legalidade é acompanhado pela desvalorização do contacto oral, pessoal e na base da confiança e exprime a suspeição: o que não for lavrado em documento legalizado, com testemunhas e de acordo com a lei vigente é considerado inválido e inexistente. Cada cidadão se agarra ao documento, desinteressado das pessoas, apesar de viver num tempo em que nada tem validade inquestionável. A cultura da confiança pessoal cedeu à da suspeita impessoal, com a correspondente quebra da cumplicidade comunitária. Acresce que a segurança social de uma comunidade que trabalhava até ser substituída no trabalho de modo a permanecer com a situação económica contratualizada e prevista cedeu à instabilidade de uma segurança social dependente da sustentabilidade: o pacto social é atingido na confiança entre gerações (com a noção de que uma pesa excessivamente à outra, que, por sua vez, não sabe se irá ser sustentada pela seguinte) e na impossibilidade da retroactividade (cada geração ou governante pode contrariar a/o anterior com retroactividade). A suspeita generaliza-se: cada um quer o documento em detrimento das pessoas; cada geração olha com suspeita a dos filhos e estes, com ressentimento, a dos pais; cada um olha por cima do ombro ansiando passar despercebido, não chamar a atenção para não atrair uma decisão que contrarie os seus interesses.

No plano político. Combinada com a questão anterior, a estratégia do poder e da política conduziu ao consenso sobre a clivagem entre a população e a classe política, com o progressivo descrédito desta: a promessa quebrada, o desconhecimento da realidade devido à profissionalização da vida partidária, o desmando e a corrupção têm feito a população irreconhecer-se nos seus dirigentes. Assim, os destinos da nação deixaram de ser decididos e orientados em coesão comunitária, mas em total fractura social, entre duas comunidades: a que legisla e governa e a que procura encontrar vias paralelas e alternativas. Entre o Portugal_ oficial e o _alternativo, o abismo vai aumentando.

Em geral, portanto, nos relatórios anuais da OCDE (Government at a Glance), a tendência é de queda vertiginosa da confiança dos portugueses nas suas instituições: em 2013, c. 20% declaram confiar no Governo e 10% nos partidos políticos, o que insinua a necessidade de mudança de processo de organização do estado político (assente nas eleições por partidos políticos). Se, em 1976, a abstenção era de c. 35%, em 2013, foi de 47,4%. Que legitimidade tem a gestão assente em maiorias de cerca de metade da população? Que futuro para o sistema democrático tal como está organizado? Em ponto de fuga, os BRIC (os países de economias emergentes, a saber: Brasil, Rússia, Índia, China), essa confiança ainda é de c. 80%, o que supõe um ciclo até ao estádio da velha Europa.

Especialização. A cultura abrangente e compreensiva cedeu à pressão da especialização: o olhar concentra-se com miopia nos fragmentos do conhecimento e da realidade, tendendo a absolutizar a separação disciplinar e profissional pelo esbatimento do contíguo e do contextual, que compõem a totalidade. Perde-se a noção de totalidade e de unidade integral e integradora e, com isso, a da efectiva co-responsabilidade_ (cada peça contribui para o bom funcionamento do sistema), deslizando-se para a des-responsabilização. O exemplo mais simples será o da medicina: a observação localizada arrasta o tratamento sectorial sem consideração pela totalidade (da responsabilidade do clínico geral ou de medicina interna), facto que tem estado na origem de consequências pouco benéficas para o doente; a figura do doente cede à configuração do caso com rótulo clínico, impessoal; o especialista desconhece a patologia e o receituário do que não domina, podendo receitar terapêutica incompatível quando não procura ou não tem aconselhamento. Na administração pública, cada serviço e, dentro dele, cada balcão ou funcionário têm a sua responsabilidade, mas, como o documento circula, ninguém surge como responsável pelo seu desaparecimento, deficiente informação, má avaliação ou incorrecta resposta: face a reclamação procedente, corrige-se a situação e dá-se outra solução ao caso, mantendo-se como incerta a responsabilidade no processo desenvolvido; em caso de erro reconhecido, mesmo que a lei preveja responsabilidade civil, no caso dos dirigentes, não se verifica que eles sejam obrigados a ressarcir pessoalmente o prejudicado, antes sendo comum que, havendo lugar a ressarcimento, seja o herário público a fazê-lo; casos há em que, reconhecida a incorrecção, a instância de resolução é a mesma, mecanismo óbvio de reiteração da situação.

Internacionalização e nacionalidade. O movimento de constituição, configuração, reivindicação e legitimação das nacionalidades que nos ofereceu o mapa político da modernidade cedeu, agora, ao movimento de integração das mesmas em territorialidades mais alargadas, internacionais, federativas ou outras (Comunidade Europeia, CPLP, etc.), diluindo as diferenças constitutivas nas semelhanças ou uniformizações possíveis. As migrações massivas, e, em particular, no caso de Portugal, as imigrações do Leste da Europa, de África e do Brasil, informam de alteridade (todas) a(s) identidade(s). A globalização promovida pelas novas tecnologias que permitem a comunicação em tempo real (promovendo o efeito de universos paralelos em vivência e comunicação simultâneas, em coexistência numa virtualidade imponderável, imaterial, quase surreal) tende a dissolver outras fronteiras.

Economia e política. Se, tradicionalmente, elas eram encaradas como independentes, agora, passaram a ser observadas na sua interdependência (3). Além da consciência do modo como a primeira influi na segunda, a efectividade dessa influência corrói a própria independência nacional e coloca a segunda ao serviço da primeira, numa preversão do funcionamente mais tradicional. As instâncias de poder estão cada vez mais escondidas atrás e mais atrás: são as holdings, os grandes grupos económicos e financeiros, o G7 e o G8, o Clube de Bilderberg, etc. Na verdade, o poder perdeu rosto e identidade.

Metamorfoses da guerra. Até meados do século XX, e desde a Antiguidade a guerra era, tendencialmente, bélica ou política (guerra fria) e admitia a modalidade do terrorismo, panorama que vem da Antiguidade. Progressivamente, a guerra sofreu metamorfoses: deslizou para as áreas financeira, informática, comunicativa, desde as Agências de rating que destroem quem (empresas, países) lhes paga até aos aliados políticos. O terrorismo passou a ter o rosto do nacional, camuflado na normalidade. Nada nem ninguém está ao abrigo de nada nem de outrem, o inimigo deixou de ser reconhecível e previsível.

E tudo o que é letal ou danoso pode ser legal(izado), pelo que a Lei deixou de ser a garantia de paz, ordem e justiça que foi desde o código de Hammurabi (4) e dos Dez Mandamentos, tornando-se a legislação (o acto, as motivações, a letra e o 'espírito' da letra) e a sua aplicação (pelos tribunais e suas diferentes instâncias), até pela participação dos mesmos juristas ou lobbies em simultâneo em diferentes instâncias (o conflito de interesses deixou de ser óbvio ou combatido), matéria de desconfiança generalizada.

Prospectiva. Na ponderação do futuro, os paradigmas tradicionais deixaram de ser capazes de criar cenários prováveis: a crise dos sistemas políticos e da própria acção política do homem, as constrições macro-sistémicas (económicas, políticas, etc.), a desconfiança omnipresente, os sucessivos fenómenos que alimentam o assombro pelo lado sombrio da natureza humana e as teorias conspiracionistas (desde a religião à economia e à política, do palco nacional ao internacional), a presença obsessiva das sociedades secretas, a nova ordem internacional, a descrença e a perplexidade, a erosão das convicções habituais e a falta de um sistema de valores fidedigno e convincente reforçam a tradicional "miopia" portuguesa (marca genética de um povo que viu e lutou quase metro a metro pela expansão das suas fronteiras e pela definição dos seus quintais), "miopia" que, não podendo tranquilizar-se no apagamento da visão periférica, se angustia pelos fantasmas que suspeita agitarem-se nesse campo de visão não dominado, apenas imaginado (não imaginário).

Discurso. Natural e consequentemente, feito de dissonância: a História e a História da Cultura, a reflexão, em geral, tendem à divergência sem diálogo. Perspectivas que se confrontam ou que nem se ouvem, debatendo-se entre o público e o privado, o sistémico e o circunstancial, o oficial e o não oficial, o ortodoxo e o heterodoxo, o colectivo e o individual, a tradição e o seu contrário, o artístico e o banal, etc. Discursos, enfim, informados de (semi)consciente ficcionalidade onde a diferença entre canto e contra-canto parece começar a deixar de se perceber. Discursos também interrompidos por súbitos choques de grande impacto: das Twin Towers (11 de Setembro de 2001) à WikiLeaks (2006), da atrocidade individualizada às das guerras.

Acresce ao quadro traçado o progressivo desinteresse pela intervenção cívica na respublica: as eleições demonstram-no bem com a elevadíssima taxa de abstenção, indicador a somar ao chamado "voto de protesto", com o "voto útil" assinalando o quase desespero. A comunidade soçobra à convicção de impotência e de incapacidade de alteração do rumo da respublica gerida por classe profissional e tecnicista (políticos, economistas, juristas, quase todos parte do aparelho partidário) com a qual não mantém diálogo nem relações, em que não se reconhece e pela qual se vê considerado estatisticamente.

Como resultado de tudo isto: o medo de existir, a ansiedade, a tendência esquizóide (da faixa etária dos 20-30 anos), a depressiva (transversal à idade adulta) e a de Alzheimer (da terceira idade), a agressividade e a incomunicação generalizadas.

Eis-nos, pois, com um problema identitário profundo!

Caminhamos, na realidade e na reflexão, no sentido dos fractais, da Teoria do Caos (Benoit Mandelbrot, 1983): a ordem clássica, da previsibilidade e da probabilidade, cede à do surpreendente e do fragmentário. Com a fractalidade, estilhaçam-se a vivência e o sentimento da comunidade e da identidade, até agora, base de História e Cultura acidentadas e incidentadas, mas sem rupturas. Era nelas que o indivíduo e as comunidades iam buscar as razões, a legitimação e o ânimo para a sua acção e para a ordem reivindicada. A família e as outras estruturas tradicionais parecem fazer repercutir as suas clivagens internas e sistémicas, potenciadas pelo ritmo acelerado da vida contemporânea, na modelização das mentalidades e das sensibilidades, resultando num efeito de crise generalizade de implosão. Os espelhos que permitiam, desde a Antiguidade, avaliar as relações entre os "corpos" (o ϕ, a Medida Áurea, será, talvez, a mais simbólica expressão disso), individuais ou factuais, estão quebrados e em progressivo estilhaçamento.

O mundo editorial do livro em papel está a restringir cada vez mais a ensaística em benefício da ficção, o que pode resultar num desinvestimento no pensamento_ compreensivo_ e na sua promoção. O mesmo, nos media em geral. Como correlato, quiçá, a suspeita face ao exercício da crítica, da reflexão, do juízo e, até, do esclarecimento e da problematização.

Onde, em última instância, faremos radicar a identidade comunitária? Como e através de que via será sentida e vivida a comunidade e transmitida essa identidade até há pouco reconhecida? Qual, para as gerações futuras, o legado identitário nuclear da comunidade? Será a identidade comunitária nacional (e dos povos, em geral) o elo perdido pelas gerações vindouras? O que, como e em quê se reconhecerão essas gerações, quando até as suas insígnias (documentos legais identitários, moeda, língua, mapa, censos, história, museologia, galeria de personalidades, etc.) tenderão a ser outradas, até mesmo pela perda da sua inteligibilidade, da sua razão de ser?

Será que caminhamos no sentido da perda de noção, consciência, vivência e sentimento de identidades comunitárias, a começar pela família e passando pela nação? E será que essa caminhada conduzirá as sociedades à ideia de comunidade como rótulo formal e esvaziado, fronteira política e por políticos feita e gerida? Se assim for, sem possibilidade de intervenção individual efectiva, será que os seus membros desistem dela para apenas se (pre)ocuparem com a sua sobrevivência e em garantir o que mais desejarem? Se assim for, as sociedades, enquanto tal, perdida a coesão, perderão também a capacidade e vontade de agir? Sociedades desistentes, amorfas, de indivíduos indiferentes à nacionalidade, à família, à cultura laboral e convictos de que nada podem fazer relativamente à "sociedade-máquina" e ao sistema, peças de engrenagem cega que apenas contabiliza a produção?

Toda esta profunda transformação terá um "efeito Medici" (Frans Johansson), inovação devida à intersecção de saberes e de vivências, de migrações e de recontextualizações. Salto qualitativo antropológico insuspeitado? Factor de qualidade de vida ou do seu contrário?

O futuro responderá, pois o espelho tradicional, como o mágico dos velhos contos, já não permite que nele nos miremos.

Este panorama, no seu conjunto, não será muito diferente do dos outros países da comunidade europeia, embora as especificidades e diferenças possam ser de grande vulto, pelo que temos de reconhecer que as problemáticas de cada identidade nacional confluem para ela (identidade comunitária transnacional), agudizando-a, complexificando-a.

Notas

(1) Sobre os textos, as suas implicações e a polémica do primeiro, falei já em "A Imaculada Conceição e a legitimação da identidade nacional" (cf. Focais Literárias, Lisboa, Esfera do Caos, 2012, pp. 155-174).
(2) Esta data foi sempre comemorada, mesmo pela monarquia constitucional e foi revalorizada por uma das primeiras decisões da República Portuguesa, em 1910, que a constituiu feriado nacional. Agora, séculos depois, essa decisão foi revogada pelo XIX Governo Constitucional, de Passos Coelho, passando o feriado a comemorar-se em dia não útil a partir de 2012.
(3) Jorge Miranda observa a respeito disto, no XXXVII Congresso Nacional de Procuradores de Estado: "O capitalismo financeiro transnacional tornou-se actor privilegiado no jogo político, económico e social. Apesar de estar ligado à crise desencadeada, em setembro de 2008, pela falência do banco Lehmann Brothers, tem vindo a adquirir crescente poder e contra os 'mercados' pouco êxito têm todas as politicas públicas. Verificou-se aquilo que, com propriedade, MARIO TURCHETTI (Tyranie et tyranicide de l’Antichité à nos jours, Paris, 2000, págs. 973 e segs.) designa por 'economização' do mundo […] Estamos muito longe da sociedade solidária (a que apelam o art. 1º da Constituição portuguesa e o art. 3º da Constituição brasileira). E, mesmo nos países aparentemente mais estabilizados, as pessoas defrontam-se com aquilo que se vem denominando sociedade de risco. Através do sistema jurídico, o Estado havia-se tornado o principal garante da confiança em massa de que necessitava a sociedade moderna. Mas a dimensão, sem precedentes, do risco e do perigo, desgastou, diz BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (A crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência, I, Porto, 2000, págs. 165 e 169), a credibilidade dessa confiança" (cf. Os novos paradigmas do Estado social, Conferência proferida em 28 de Setembro de 2011, em Belo Horizonte, no XXXVII Congresso Nacional de Procuradores de Estado. Para o texto completo veja-se http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/1116-2433.pdf).
(4) De c. 1700 a.C., o primeiro corpo de leis regulando relações de trabalho, família, propriedade e escravidão e a sua escrita na pedra consagra a imutabilidade: com 282 leis em 3600 linhas. Além deste, da Babilónia, poderíamos referir outros: os códigos de Ur Nammu, rei de Ur (c. 2050 a.C.), de Eshnunna (c. 1930 a.C.) e de Lipit-Ishtar de Isin (c. 1870 a.C.). De acordo com alguns especialistas, o Código de Hammurabi poderá ter influenciado alguns dos preceitos consagrados na Torah, em particular no direito de propriedade. O de Eshnunna contém elementos que se encontram tanto no direito sumeriano (Códigos do Ur-Nammu e do Lipit-Ishtar) como no direito babilônico (Código de Hamurabi) e direito assírio, o que demonstra algum consenso nas questões essenciais da regulamentação da vida social.

Primeira parte
http://wsimag.com/pt/culture/8322-identidades-nacionais-o-futuro-incerto-dot-dot-dot