Palmeiras não é uma equipe de índios.

(Abel Ferreira, técnico do time de futebol brasileiro, Palmeira, 11/07/2024)

Sem ter como segurar, o discurso escorre como água e os ‘Cabrais’ da colonialidade mostram sua versão discursiva de tempos em tempos, dessa vez o cenário foi o futebol nacional. Não é de hoje que o futebol brasileiro, assim como o internacional, se apresenta como o cenário de manifestações de xenofobia, preconceito e racismo. De certo, que muitos clubes e atores do cenário futebolístico tiveram e ainda tem sua contribuição no combate as diferenças, mas isso não pode silenciar o mais novo fato ocorrido no cenário futebolístico nacional por meio do discurso preconceituoso, racista e xenofóbico de Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, no dia 11 de julho de 2024.

O Campeonato Brasileiro de futebol, conhecido popularmente como O Brasileirão, acontece todos os anos no país e, além de ser um dos maiores entretenimentos futebolísticos nacional, movimenta uma grande quantidade de recursos capitais e fomenta discursos sobre a cultura nacional. Palmeiras é um dos grandes times de futebol de expressão nacional, dividindo estandarte com outros grandes times como Flamengo, Vasco, Coríntias e São Paulo, por exemplo. Em se tratando de títulos nacionais, o Palmeiras conquistou 18 vitórias deste porte. Hoje ele é o clube que mais vezes sagrou-se campeão brasileiro, com 12 conquistas. Possui um registro de 4 vitórias nas Copas do Brasil, 1 Supercopa do Brasil e 1 Copa dos Campeões. Segundo registros, pelo Campeonato Brasileiro, o Palmeiras é o único clube a ser campeão em cinco décadas diferentes. Trago essas informações na tentativa de mostrar que o clube Palmeiras exerce uma grande influência na cultura futebolística nacional e, portanto, precisa ter responsabilidade quando trata de parte de sua nação.

Quem é Abel Ferreira?

Ex-futebolista e atual técnico do Palmeiras, Abel Fernando Moreira Ferreira (46), nasceu na cidade de Penafiel, uma cidade portuguesa e capital da sub-região do Tâmega e Sousa, pertencendo à região do Norte e ao distrito de Porto. Desde 5 de novembro de 2020, Abel Ferreira é técnico do Palmeira e seu primeiro título como treinador veio em janeiro do ano seguinte com a vitória sob o Santos no estádio do Maracanã, na Copa Libertadores da América de 2020. Para muitos jornalistas e entendidos do futebol brasileiro ele é considerado um dos maiores e mais vitoriosos técnicos da história do futebol brasileiro, mas na seleção portuguesa, como jogador, sua passagem foi de breve experiência, seu sucesso e ascensão na carreira acontece apenas em cenário brasileiro.

A colonialidade do ser, do saber e do poder na manutenção do discurso de Cabral

Desde a falácia do “Descobrimento do Brasil”, o discurso de Cabral continua vivo por aqui. A paráfrase do discurso de Abel Ferreira ao discurso de Cabral ocorre em procedimento de crítica e ironia. A começar pela ideia de descobrimento que nunca foi verdade, pois os povos indígenas já ocupavam as diferentes regiões do chamado “Novo Mundo”; em segundo, por denunciar a colonialidade da ideia binária da relação entre povos civilizados X povos selvagens, onde os civilizados são sempre os em condição de exercício hegemônico de poder, seja no saber, no ser, ou no poder, como diria Quijano, um dos precursores dos estudos decoloniais em Abya-Yala.

Ocorre que na quinta-feira, 11 de julho de 2024, em entrevista coletiva, após a vitória do Palmeiras sobre o Atlético de Goiás, no Campeonato Brasileiro, Abel Ferreira, quando questionado sobre a atuação do jogador Aníbal Moreno, respondeu o seguinte:

Aníbal tem uma dinâmica muito boa e por isso queríamos muito esse jogador. A direção não conseguiu trazer quando precisávamos, porque não dava. Foi quando nós conseguimos e ainda bem em boa hora que nós o trouxemos. Eu diria que ele é o equilíbrio, o pêndulo da nossa equipe. Dá confiança para aqueles quatro, cinco, seis chegarem à área, e ele com o Vitor (Reis) hoje e o Gómez, e o Rocha ou Mayke, puderem equilibrar a equipe a dar liberdade aos da frente para atacar. Isso não é uma equipe de índios. Há uma organização e dentro dessa organização há liberdade para eles criarem, para se ligarem e há princípios de jogo que nós temos, um deles é o equilíbrio, e o Aníbal é um desses pêndulos, esse motorzinho, que não só tem como tarefa ser a primeira cobertura, como também ligar jogo e pôr a equipe a jogar. (Narrativa de Abel Ferreira, em entrevista coletiva. Grifo nosso)

Quando afirma “Isso não é uma equipe de índios” e quando continua justificando que “Há uma organização”, “há princípios”, Abel Ferreira deixa o discurso da colonialidade do ser, do saber e do poder escorrer em suas mãos como água, pois no discurso não existe esconderijo para a xenofobia, para o preconceito nem para o racismo. Em outras palavras, Abel Ferreira afirma que sua equipe, ao contrário dos ‘índios’ que são selvagens, desorganizados e sem conhecimento, Palmeiras é uma equipe de civilizados, de organizados e de pessoas com conhecimento.

Em uma perspectiva decolonial, quando escreve sobre a Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas, 2020, Nelson Maldonado-Torres, em suas dez teses, desenvolve as dimensões básicas das colonialidades do poder, do saber e do ser. Segundo o autor, os objetivos e feitos da analítica da colonialidade é incidir sobre a subjetividade dos indivíduos em processos de exploração, dominação, expropriação, extermínio, naturalização da morte, da tortura e do estupro. Por essa possibilidade de leitura é que denuncio a naturalização deliberada da narrativa de Abel Ferreira ao utilizar a palavra ‘índios’ com o efeito de sentido de desordem.

A fala do técnico do Palmeiras acontece um dia após o início da discussão da Proposta Emenda Constitucional (PEC) 48 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Nomeada, pelo movimento indígena e por todos aqueles que entendem o prejuízo de sua aprovação, como PEC da Morte, a proposta quer inserir o Marco Temporal na Constituição Federal. A transmissão da discussão foi aberta, ao vivo pelo YouTube e quem conseguiu assistir presenciou um dos maiores cenários de violência discursiva contra os povos indígenas. Proposta pelo senador Hiran Gonçalves (PP-RR) e outros 26 representantes do legislativo, entre eles o senador Plínio Valério (PSDB-AM), A PEC da Morte se baseia na rasa premissa de segurança jurídica para o processo de demarcação das Terras Indígenas, mas na verdade, evidencia um sério risco aos direitos fundamentais dos povos indígenas e à democracia brasileira. Três dias depois, os povos indígenas Guarani Kaiowá, da terra indígena Panambi, Lagoa Rica, no município de Douradina (MS) sofreram grave e violento ataque. Segundo informações, fazendeiros e capangas invadiram a área indígena com camionetas, em alta velocidade e atiraram contra todas as pessoas, inclusive crianças. Embora pareçam situações distintas, todas elas estão associadas ao discurso de ódio produzido ainda pelos processos de colonização, chamado aqui por mim de Discurso de Cabral e perpetuados em autopropulsão pela colonialidade e seus desdobramentos.

O que todos os três fatos possuem em comum?

Embora cenário e atores pareçam distintos, uma vez que discurso é estrutura e acontecimento (Pêcheux1), todos os três fatos tentam validar e cristalizar a ideia de que os povos indígenas representam atraso para o desenvolvimento do país, seja no campo cultural (futebol), político e/ou econômico. Mesmo com a existência da Lei 11.645, de 10 de março de 2008, que torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, tanto Abel Ferreira quanto todos aqueles senadores que defendem a PEC da Morte insistem em usar vocabulários que desqualifiquem os povos indígenas. No caso do técnico do palmeiras, o léxico ‘índio’. Ao optar por validar o léxico “índio” ao invés de indígena, Abel Ferreira reforça aquilo que Maldonado-Torres aponta na analítica da colonialidade como morte da subjetividade do outro. Índio reforça a ideia de descobrimento do Brasil na pessoa de Cabral. Reforça ainda o apagamento da diversidade e complexidade dos povos indígenas que por aqui viviam e ainda vivem, na tentativa de universalização das subjetividades e dos apagamentos de nossos corpos e memórias. Nos fazer esquecer quem somos também é uma maneira de invadir nossos territórios e disparar tiros contra nossos corpos.

Mesmo depois da Constituição de 1988 e com a jurisprudência garantindo os direitos de existir dos diferentes povos indígenas no Brasil, por meio dos artigos 231 e 232, são constantes os processos de violência pelos quais passam os povos indígenas e diferentes são as condições de acontecimento discursivo que facilitam esse processo. Segundo Slavoj Žižek2, além da violência que sangra, portanto visível, existem outros tipos de violência muito mais incisivas, mesmo que aparentemente elas atuem no campo de naturalidade.

Para tratar desses tipos de violências, o esloveno desenvolve o Triunvirato da violência. Para o autor, o sangue é apenas a ponta de um iceberg, a parte que não conseguimos ver com olhos ‘colonizados’ é exatamente aquela que atua na aniquilação das subjetividades. Žižek afirma que o triunvirato da violência é uma combinação entre violências subjetiva, simbólica (linguagem) e sistêmica (sistemas político e econômico). Para o autor, a violência subjetiva é apenas a parte mais visível de um triunvirato. Encarnada na linguagem está a violência simbólica, é nela que o discurso escorre como água e se manifesta e se identifica nas diferentes formações discursivas (Foucault3), é nela também que habita um certo poder hegemônico de efeitos de sentido, onde costuma viver a ‘verdade’, imposta por exercício de poder. Já a violência sistêmica, essa é a mais catastrófica, pois atua no campo da política e da economia é ela que regula nossas posições sociais, que regula o estabelecimento da ordem, que cria e manipula a jurisprudência, algumas vezes em nome de Deus, outras do Rei e ainda em nome do Estado.

Como resistir aos discursos de Cabrais?

Como escrito em momento anterior, discurso é estrutura, mas também acontecimento. Ocorre que há mais de 523 anos os povos indígenas resistem aos diferentes processos de extermínio desenvolvidos e aplicados pelas diferentes versões de Brasil. Ao contrário do que afirma a história colonizadora, para Cabral há 524 anos não foi nada fácil afirmar que descobriu o Brasil, hoje o cenário discursivo não é diferente.

Algumas horas após a divulgação da fala xenofóbica de Abel Ferreira, Célia Xakriabá, a primeira deputada federal indígena do povo Xakriabá, manifestou total repúdio em suas redes sociais. A deputada escreveu com letras garrafais em suas redes sociais “OS POVOS INDÍGENAS MERECEM RESPEITO!”, na sequência, ela afirmou que o técnico do Palmeiras usa de racismo para definir o time que comanda e o corrige afirmando que não se usa o léxico “índio”, mas indígena e depois questiona que tipo de conhecimento o técnico possui sobre os povos indígenas e afirma que não podemos aceitar esse tipo de discurso, pois merecemos respeito. A publicação de Xakriabá viraliza nas redes sociais dos movimentos e segmentos indígenas.

Sônia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas, em nota pública, afirmou que diferente do atual presidente da República de Portugal que recentemente reconheceu a responsabilidade do país pelo massacre de indígenas e pelos processos de escravização de povos no Brasil, Abel Ferreira errou e não foi um erro simples ao usar “não é equipe de índios” para tentar qualificar a atuação de sua equipe de futebol. Sônia Guajajara não apenas apontou o erro do discurso do técnico do palmeiras como o convidou para conhecer a história dos povos indígenas, além de convidá-lo para conhecer a história da colonização de seu próprio país de origem.

Depois de receber inúmeras críticas, Abel Ferreira postou em suas redes sociais, no dia 12, seus pedidos de desculpas. Em suas palavras o técnico afirma:

Repudio toda e qualquer forma de preconceito e discriminação. Infelizmente, há expressões que continuamos a perpetuar sem que nos debrucemos sobre o seu conteúdo. Errei ao usar uma dessas expressões na coletiva de imprensa. Reconheço que palavras têm poder e impacto, independentemente da intenção. Devemos todos questionar, pensar e melhorar todos os dias. Peço desculpa a todos e, em especial, às comunidades indígenas (escritas de Abel Ferreira em suas redes sociais, 12/07/2024).

Mas a questão vai pra muito além de um simples pedido de desculpas em redes sociais. O que a maioria da população não percebe é que os pesos e medidas não são os mesmos. A fala do técnico em rede nacional reafirma a posição dos senadores que defendem a PEC da Morte e encorajam pistoleiros e atiradores a invadirem territórios indígenas, enquanto um pedido de desculpas, além de invalidar a Lei Federal 7.716/89, conhecida como Lei do Racismo, que inclusive inclui a xenofobia, alimenta em autopropulsão a hipocrisia das garantias de direitos nesse país. São discursos como de Abel Ferreira e de todos os senadores que se posicionaram a favor da PEC 48 que alimentam o chamado imaginário cristalizado sobre os povos indígenas tão criticado pelo historiador indígena Edson Kayapo.

Na tentativa de resistir ao triunvirato da violência, Žižek afirma que precisamos ser capazes de perceber os contornos dos cenários que alimentam esses acontecimentos, em outras palavras, precisamos ser capazes de realizar análises de conjunturas, de perceber não apenas a estrutura, mas o acontecimento discursivo. Já Maldonado-Torres nos sugere a analítica da decolonialidade na construção do – mundo de ti –, assim ativismo social, questionamento fundamentado em nossas teorias e pensamentos, criatividade na produção de nossas artes e na manutenção de nossas espiritualidades são fundamentais na resistência do apagamento de nossas subjetividades.

Há 524 anos estamos resistindo e produzindo novas tecnologias de existência. Das bases, das cidades, das universidades, do Congresso Nacional e de todos os lugares não podemos permitir que nosso corpo-território-memória seja sequelado por discursos de Cabrais. Não podemos naturalizar a colonialidade e juntos na produção de resistências iremos barrar Cabrais e suas pseudo tecnologias, pois Nosso Marco é Ancestral, Sempre estivemos aqui! Não ao Marco Temporal!

Notas

1 Pêcheux, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni P. Orlandi. 7. ed. Pontes Editora, 2015.
2 Zizek, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução Miguel Serras Pereira. São Paulo, Boitempo, 2014.
3 Foucault, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga Almeida Sampaio. Edições Loyola, 2011.