À beira da falência, em 2009, Portugal já não tinha mais nenhuma carta na manga para restabelecer minimamente a sua economia, e a jogada final ocorreu quando o Governo Português, com o objetivo de atrair investidores, ofereceu isenções fiscais aos estrangeiros que comprassem imóveis no país. A iniciativa foi um sucesso, e os cofres públicos puderam voltar a “respirar”. No entanto, o governo não contava que Portugal se transformaria em uma verdadeira Disney para os brasileiros que queriam se aventurar e começar uma nova vida em terras europeias.
Em 2008, Portugal foi um dos países mais atingidos pela crise econômica que assolou a Europa. O país que já vinha com um histórico de baixo crescimento econômico e níveis altos de endividamentos, precisou recorrer aos bancos como alternativa de socorro financeiro, mas isso acabou piorando ainda mais a situação, levando a estabilidade financeira por água abaixo. Para tentar lidar com a crise, o governo implementou várias medidas para conter o caos econômico que assolava o país, além de buscar apoio internacional.
Em 2011, Portugal solicitou à União Europeia e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) um empréstimo de 78 bilhões de euros para estabilizar sua economia, o que resultou em uma matéria da BBC News intitulada “Capitalismo da Sardinha: Como Portugal foi de país falido a exemplo na Europa”. Com tentativas frustradas, as políticas implementadas falharam, resultando na queda do governo e do primeiro-ministro José Sócrates. O empréstimo só foi concedido sob a condição de que mais medidas de austeridade fossem implementadas.
Assim, o Governo Português cortou milhares de empregos e salários do setor público, além de aposentadorias, aumentou impostos, liberou incentivos fiscais para fundos de investimentos imobiliários voltados à reabilitação urbana, concedeu o Golden Visa para investidores (residência no país para quem adquirisse um imóvel acima de 500mil euros e passasse mais de 183 dias no país), além de novas reformas que garantiram a “boa imagem” de Portugal perante a União Europeia.
Apesar de todo o esforço, as políticas foram muito benéficas para investidores estrangeiros, mas não para o povo português, que ainda sofria com a elevada taxa de desemprego (quase 18%) e a pobreza, que atingia 20% da população em 2013. Com uma população desempregada e pobre, no ano de 2015 um novo governo foi eleito para tentar reverter a situação caótica do país. Dessa vez, com políticas voltadas para redução de danos causados pela dívida e medidas extremas, foi muito bem aceito pela população e teve sucesso.
No ano de 2017, Portugal viu o maior crescimento do seu PIB dos últimos 20 anos, de 2,7%. A grande virada de chave foi quando o país se tornou um polo turístico nunca visto antes. Todos os olhos estavam em Portugal, pela primeira vez era o “centro” do turismo e Lisboa era a capital mais descolada da Europa.
Desejada por todos e adorada por jovens, estudantes, nômades digitais e novas start-ups, Lisboa se tornou o novo centro europeu. Com clima agradável, preços baixos e belezas naturais incríveis, Portugal foi eleito o melhor destino de férias da Europa. Isso impulsionou a economia e transformou o cenário do país. Devido ao crescimento turístico na capital, a demanda imobiliária também sofreu grandes alterações. A procura por hoteis, alojamentos locais e alugueis de curto prazo, como os listados no Airbnb, disparou. Aliado a isso, houve um aumento na chegada de imigrantes à procura de imóveis para morar, atraídos pelas belezas naturais, baixo custo de vida, poder de compra superior ao do Brasil e a possibilidade de regularizar a residência no país mesmo após entrar como turista.
Portugal se tornou o sonho de muitos brasileiros que chegavam de todas as partes, representando atualmente mais de 40% da população estrangeira. Esses dados, porém, se referem apenas aos imigrantes em situação regular, sem contar os que vivem na ilegalidade ou em situação irregular. Segundo um banco de dados sobre custos de vida, um casal com consumo médio poderia morar em cidades menores de Portugal com uma renda de 1.700€ por mês (somada entre os dois). Em Lisboa, 2.000€ já seriam considerados suficientes.
Apesar dos custos de vida relativamente baixos para itens como alimentação, transporte e medicamentos, os valores dos alugueis se tornaram incontroláveis. Um aluguel na capital para um apartamento de um quarto custa, em média, 1.200€ por mês, e em cidades do interior pode chegar a 750€. Mesmo quem tem condições de pagar muitas vezes enfrenta exigências rigorosas, como 12 meses de aluguel adiantado, fiador, comprovantes de renda e de imposto de renda, além de aprovação do proprietário, que pode ser negada por o inquilino ser estrangeiro.
Com um salário mínimo de 820€, o mais baixo de toda a Europa, a única solução para muitos é alugar um quarto em casas compartilhadas por 4, 5, 6 ou mais pessoas. O valor médio de um quarto na capital e em quase todo o país gira em torno de 400/500€. Segundo uma pesquisa feita em 2023 e publicada pelo G1, os preços de venda de imóveis aumentaram cerca de 137%, e os aluguéis subiram em média 65% desde o boom turístico de 2015. Ou seja, mais de 60% do salário de um trabalhador comum é consumido pelo aluguel. Uma matéria da CNN Brasil em 2023 relatou que o preço do aluguel aumentou 11%, um recorde em meio à crise do custo de vida. Na cidade de Évora, uma hora e meia ao sul de Lisboa, os aluguéis subiram 127% em apenas doze meses.
A maior parte da renda das pessoas é automaticamente abatida nesses valores exorbitantes em moradias, se fizermos um cálculo simples, colocando um valor médio de aluguel de 500€, considerando uma pessoa que mora sozinha e ganha um salário mínimo, assim que ela recebe o ordenado e paga a moradia mensal fica com 320€, sem contar aproximadamente 150€ em alimentação, luz, água, transporte, internet, contas pessoais, a conta simplesmente não fecha.
Mas e como fica o povo português? A população se viu obrigada a ir cada vez mais para regiões longes dos grandes centros. As associações portuguesas que defendem o direito da habitação digna, dizem que os valores dos alugueis em regiões como Lisboa, Porto e Algarve, deveriam ser proibidos para a população local. Com mais de 720 mil casas vazias ou abandonadas, e com cerca de 160 mil na região de Lisboa, não se justifica a alegação de falta de oferta de imóveis. A realidade é que esses imóveis estão indisponíveis para a população que realmente precisa. Muitos pertencem a investidores que os utilizam apenas por um ou dois meses ao ano. Durante o verão, é comum ver trabalhadores vivendo em tendas, sem acesso a banheiros ou cozinhas, porque suas antigas moradias foram convertidas em alojamentos de curto prazo.
No ano de 2018, havia 6.044 pessoas em situação de rua, número que saltou para 10.773 em 2022, segundo um estudo publicado pelo portal Sapo em 2023. Na estação do Oriente, em Lisboa, a quantidade de pessoas dormindo no local é alarmante: jovens trabalhadores que não conseguem arcar com o custo de moradia. Com apenas 2% de alojamentos públicos, o governo é obrigado a ajudar pessoas em situação de rua, especialmente quando essas mesmas pessoas contribuem com impostos e fazem parte da força de trabalho do país.
Após uma série de protestos, o governo foi obrigado a tomar medidas em relação à crise habitacional. O Golden Visa foi encerrado, os proprietários foram proibidos de aumentar o valor do aluguel em contratos vigentes, e foram criadas facilidades para jovens entre 18 e 35 anos, como financiamentos de até 100% do valor do imóvel e isenção de impostos. Mais de 30 medidas para combater a crise habitacional foram implementadas. O que começou como uma tentativa de salvar a economia portuguesa, com incentivos fiscais e políticas voltadas a atrair investidores internacionais, acabou por criar uma crise habitacional sem precedentes. Portugal, que virou o sonho de muitos estrangeiros, especialmente brasileiros, viu esse sonho transformar-se em pesadelo para a população local, que sofreu com o aumento do custo de vida enquanto os salários permaneciam baixos.
A crise imobiliária, impulsionada pelo turismo e pelos investimentos estrangeiros, tornou o acesso à moradia cada vez mais difícil para os próprios portugueses, especialmente nas grandes cidades como Lisboa e Porto. A grande ironia é que, apesar de milhares de casas estarem vazias, os preços continuam inatingíveis para a maioria da população.
O governo português tem buscado novas soluções, mas a realidade é que até o momento atual a situação só parece piorar. A crise de habitação não é apenas uma questão de mercado, mas também um problema social que reflete as desigualdades profundas entre os que se beneficiam desse sistema e os que são excluídos. A promessa de uma recuperação econômica acabou se tornando um fardo pesado para aqueles que deveriam ter sido os principais beneficiários do crescimento do país.