Tenho um primo que na juventude era super namorador. Uma vez, no início dos anos 90, me apresentou uma nova namorada. Uma mulher linda, com um porte esbelto, uma postura sempre ereta e uma boa conversa. Uma pessoa interessante!
Um penteado afro, uma trança afro no ambiente de trabalho te incomoda? Depende? Do quê? Se o penteado afro se apresenta na recepção, na cozinha ou nos serviços gerais te parece normal ou aceitável (‘apesar de exótico’)? E se este penteado aparece nas baias de estações de trabalho, numa sala privada ou numa sala de reuniões entre a diretoria? Te parece fora do lugar?
Sara é uma mulher negra nascida em uma família de classe média alta. Sua mãe é branca e seu pai é negro, formando assim uma família miscigenada. Na infância e adolescência sempre conviveu com pessoas majoritariamente brancas ou embranquecidas como ela, que para se sentirem pertencentes àquele grupo social, eram demandadas a amenizar as características da sua afrodescendência, como, por exemplo, “domar” os cabelos com química. Estratégia que caía por terra todos os verões, já que adorava uma praia e a química não resiste ao excesso de água e Sol.
Como uma criança e adolescente negro conseguem entender o seu papel numa sociedade onde as pessoas bem-sucedidas ao seu redor não são negras? São normalmente pessoas brancas. Onde os negros e/ou pardos lhe são apresentados normalmente como os serviçais dos locais por onde circula.
Como a maioria das pessoas da sua classe social, Sara teve uma boa formação educacional e, na vida adulta, conseguiu se inserir no mercado de trabalho em grandes corporações. Mas as suas indagações seguiram. E para ascender na carreira? Demonstrar as suas características ou mesmo gostos de uma pessoa afrodescendente afetaria o seu crescimento profissional? Afinal, as mulheres que via em posição de liderança não tinham cabelos volumosos, trançados ou penteados afros.
No Carnaval de 2020, em busca de sua autocompreensão, aceitação e autoafirmação, Sara toma uma decisão: resolve trançar os cabelos para participar da folia! Indagada sobre as razões, ela responde:
Poderia dizer que acho trança muito bonito e que tive vontade de fazer. Mas na verdade muitas outras camadas estão escondidas. Camadas estas que não estavam bem elaboradas na minha cabeça em 2020, mas que eram fortes o suficiente para me fazer enfrentar os preconceitos e medos. Pode parecer exagero falar sobre medo quando falamos em um penteado, mas não é. Trançar os cabelos me aproximava de uma cultura que me foi distanciada durante grande parte da minha vida. Me aproximava de algo que ‘não era para mim’. Trançar os cabelos era quase uma obsessão, um chamamento que desencadeou uma abertura de consciência e um resgate cultural e de identidade.
A única questão é que entre o trançar dos cabelos e o Carnaval ainda lhe faltava um dia de expediente no escritório.
Ao longo daquela noite, no início da década de 90, descobri que a namorada do meu primo tinha pertencido ao corpo do Balé do Teatro Castro Alves. Daí a sua postura esguia e elegante: era uma bailarina! Fiquei ainda mais impressionado com ela, pois sempre adorei o Balé do TCA e, ao mesmo tempo, embasbacado com a capacidade do meu primo namorar beldades. Indaguei sobre o motivo dela ter saído do Balé do Teatro Castro Alves.
Quando chegou ao escritório com suas tranças, além de olhares diferentes e espantados, escutou frases inadequadas. Antes mesmo de colocar as tranças, ouviu de pessoas próximas que não ficaria elegante, que aquele tipo de penteado é artificial etc.
Entre as frases inadequadas que a Sara escutou no escritório após a colocação das tranças, destaca-se: “Você não vai ficar assim sempre, né?”; “Como faz para lavar o cabelo?”; “Você vai usar isso só no Carnaval e depois vai tirar?”; “Você fica muito diferente com essas tranças!”; “Até que não ficou muito ruim!”. Apesar da maioria dos olhares e comentários terem sido negativos, outros destacaram a beleza e a coragem dela ter realizado o penteado.
De uma forma geral, recorda que nesta primeira experiência não se sentiu confortável. Não se sentiu acolhida. Se sentiu colocada em uma prateleira como um objeto exótico. Todos os olhares e comentários a deixaram insegura. Entretanto, reafirma que alcançou os seus objetivos com aquele momento:
Existe um processo muito individual de aceitação da minha origem, da minha ancestralidade, além de desconstruir em mim o estereótipo de como deve ser a estética de uma profissional trabalhando em um ambiente corporativo. Uma imagem construída no meu imaginário, mas extremamente reforçada pela ausência de representatividade, pelos comentários de lideranças ao longo de muitos anos e pelos exemplos que vi.
A Sara entende que o fato de ter demorado tantos anos para ter coragem de fazer um penteado afro e, ainda por cima, usar o momento do Carnaval como “desculpa” para fazê-lo são consequências de um processo silencioso de intimidação. Pode-se acrescentar que esta intimidação ocorre de forma sorrateira em relação aos aspectos da história e cultura da pessoa negra, se apresentando através da negação coletiva e projetada na individual.
Passei grande parte da minha vida tentando me adequar a um “padrão” que era o modelo estético que eu via. Ser mulher e ter ambição de crescimento e reconhecimento profissional já era, por si só, um grande desafio. Isso me levou a me aproximar esteticamente dos exemplos das poucas mulheres que via em cargos de liderança. Me obrigando a “domar” os cabelos, naturalmente mais rebeldes, e me apresentar com cores sóbrias e roupas formais, apesar de ter um gosto por roupas mais coloridas.
Me impressiona o acaso de ter encontros únicos com determinadas pessoas e sair profundamente marcado por algum pensamento, gesto ou expressão. Jamais esquecerei a resposta da namorada do meu primo sobre as razões de ter saído do Balé do TCA:
Estava cansada de ser admirada e respeitada quando estava sobre o palco, mas quando caminho como cidadã pelas ruas sou frequentemente desrespeitada!
E seguiu:
Todos admiram e respeitam a pessoa negra enquanto artistas num palco, mas no cotidiano seguimos sofrendo discriminações diariamente. Então cansei de viver naquela dicotomia.
Obviamente após tantos anos não estou seguro se foram exatamente estas as palavras, mas estou muito seguro de que a mensagem foi exatamente esta.
No Carnaval de 2024 a Sara repetiu as tranças e percebeu uma evolução no comportamento das pessoas, pois não se mostraram mais confortáveis para fazerem comentários negativos semelhantes ao de 2020. Claro que ainda se deparou com olhares de surpresa, porém as pessoas não se sentiram mais à vontade para verbalizar agressões. Notou também que algumas pessoas já conseguem perceber a importância de ter representatividade, pois ouviu elogios, comentários estruturados de reforço e da importância de verem suas culturas representadas no ambiente.
Será que a nossa sociedade evoluiu um pouquinho nestes quatro anos? Ou quanto desta nova percepção seria uma consequência da experiência que a Sara proporcionou às pessoas daquele microambiente corporativo? Ou talvez, quanto seria uma mudança de perspectiva da própria Sara? Ela destaca:
Depois de alguns anos e de um processo de aceitação muito profundo, me sinto segura para assumir as minhas preferencias, meus gostos e arcar com qualquer consequência direta ou indireta. Acredito que este fato tenha interferido na postura mais respeitosa das pessoas comigo desta vez.
A Sara entende que o ambiente corporativo pode ser um lugar que reforça muitos preconceitos já existentes na sociedade. Na sua visão, a competição pelo poder potencializa questões estruturais como o machismo e o racismo, por exemplo. Estes preconceitos se materializam em micro agressões que minam a autoestima dos representantes de minorias da sociedade. As oportunidades são apresentadas de forma desigual, inclusive financeiramente.
Reconhece que há um movimento de mudança. Acredita que as discussões sobre temas sociais e as exigências do mercado começam a refletir em uma evolução de comportamento no ambiente corporativo. Por outro lado, entende que a velocidade dessas mudanças ainda não é ideal, mas crê que os movimentos sociais fazem um trabalho importante de resgate da autoestima e da autoconfiança de pessoas pertencentes as minorias, contribuindo para este processo de mudança.
Sara é otimista em sua visão atual e de futuro:
O ato de trançar os fios é muito mais profundo que apenas um penteado. É um resgate cultural muito potente. Junto com o processo do trançar dos cabelos veio a necessidade de entender mais profundamente como a sociedade brasileira foi formatada, tomar consciência das desigualdades e dos preconceitos tão dilacerantes. Foi assumir uma postura mais ativa na luta feminista e antirracista, entender o meu lugar com todos os privilégios e desafios que a minha história e a história dos que vieram antes de mim apresentam. E foi, também, uma tomada de consciência do meu poder como mulher e como mulher negra frente a tudo que se apresenta. Trançar os cabelos se apresentou como potência de vida.
Por fim, questiono se ficaria confortável em usar as tranças no escritório em outras ocasiões que não fosse uma época de Carnaval? Recebo um sonoro: “Com toda certeza.”
Nos resta refletir: Estamos preparados ou evoluindo para aceitar, conviver e respeitar a pessoa negra com as suas características culturais em qualquer ambiente e classe social? Ou cremos que para que ela seja aceita em determinados nichos necessita reduzir as suas características? Se a resposta for um não para a primeira pergunta ou um sim para a segunda então seguiremos concluindo o mesmo da namorada bailarina do meu primo:
Todos admiram e respeitam a pessoa negra enquanto artistas num palco, mas no cotidiano seguimos sofrendo discriminações diariamente.