Quem visita ou vive no litoral pode não perceber ou simplesmente não prestar atenção. Mas enterrados em algumas dunas da costa do mundo inteiro, existem vestígios de uma sociedade que habitou as praias do Atlântico e do Pacífico há milênios atrás. Muitas vezes confundidos com uma simples duna, ou amontoado de conchas, essas formações criadas pela mão humana, algumas datadas com cerca de 2 a 8 mil anos, ainda despertam certa curiosidade entre pesquisadores e entusiastas da história da humanidade. Concentrados em sua maior parte no litoral brasileiro, a cultura Sambaqui ou simplesmente “Sambaquis”, deixaram a sua marca para as futuras gerações nos presenteando com vestígios arqueológicos em diversas localidades do país. Mas afinal, quem foram os responsáveis por esse mistério arqueológico, que apenas recentemente ganhou a devida notoriedade de órgãos públicos e paleontólogos de diversas partes do Brasil e do mundo?
Começamos com a origem humana na América
Mesmo com vestígios na América do Norte e em Portugal, onde são chamados de “concheiros”, a cultura Sambaqui deixou suas marcas em sua esmagadora maioria na costa brasileira. Pode-se dizer que os Sambaquieiros, como são chamados os povos que deram origem a esses sítios, estiveram em terras brasileiras muito antes de Pedro Álvares Cabral e seus companheiros desembarcarem no estado que hoje é conhecido como Bahia. Podemos afirmar também, através de pesquisas divulgadas por arqueólogos, que esses povos caminhavam pelas areias das praias brasileiras mesmo antes do surgimento das tribos que foram dizimadas pela colonização portuguesa a partir de 1500. Alguns estudos inclusive ligam a origem da cultura dos Sambaquis com os primeiros povos que chegaram no continente americano cruzando a Beríngia, ou o estreito de Bering.
Em uma espécie de adaptação ao lugar e mudanças culturais, os povos que chegaram na América do Sul foram se modificando, tanto geneticamente quanto culturalmente. Tanto é, que a prova da existência de um local fixo, onde eram armazenados ossos de animais, peixes e até servindo de cemitério para seres humanos, nos mostra um processo de sedentarização desses povos ao longo do tempo. A abundância de recursos, facilidade geográfica para se locomover em curtas distâncias e o clima, colaboraram para que os Sambaquieiros se estabelecessem em diversos pontos do litoral. Porém, quando falamos em cultura sambaqui, devemos ter em mente que não se trata apenas de um povo só, ou apenas uma tribo, mas sim de uma cultura que se espalhou através de diversas tribos pela costa do Brasil.
Cientistas constataram que existem diversas peculiaridades e diferenças genéticas entre os sambaquis que habitavam o sul do Brasil com os que habitavam a região sudeste. Por exemplo, existem diferenças genéticas inclusive nas mesmas regiões, porém com alguns milênios de distância, o que indica uma mescla de povos com o passar dos anos. Esses povos, apesar de viverem a maior parte do tempo nas praias, também se relacionavam com tribos e sociedades que habitavam o interior do continente sul americano. Pesquisas científicas apontam algumas semelhanças genéticas em ossadas humanas encontradas em sambaquis com o mesmo povo do fóssil de Luzia, o mais antigo encontrado na América do Sul e que habitava o interior do Brasil, localizado na cidade de Lagoa Santa em Minas Gerais. O fóssil de Luzia é datado tendo como cerca de 13 mil anos. Isso é uma amostra de que com o passar dos milênios, as culturas de diferentes povos sambaquieiros foram se misturando, entre si, ou com povos de outras localidades.
Ozymandias da América do Sul
Com diferentes medidas de altura e largura, alguns podendo chegar a 40 metros de altura ou 100 metros de diâmetro, os Sambaquis eram locais utilizados com diversas finalidades. Restos de animais terrestres e peixes que serviam como alimento, provas de rituais e cerimônias espirituais, evidências de moradia e cemitério de seres humanos além de artefatos de artesanato e ritualísticos foram encontrados em algumas escavações. Com o passar dos anos e com a aparente mudança genética e cultural, essas estruturas foram sendo moldadas com diferentes artefatos e significados. Somente no Brasil existem de 300 a 350 sítios arqueológicos denominados como Sambaquis, cada um com suas peculiaridades. À primeira vista podem parecer apenas dunas em formato piramidal, porém, o fato de muitos deles estarem afastados da beira do mar, em locais onde não existe areia do mar há muito tempo, devido ao recuo das águas, nos mostra o quão antigoa eles podem ser. Tão antigo, que os ossos, que hoje estão enterrados, sofreram um processo de fossilização com a chuva, transformando-se em conchas. O próprio nome Sambaqui, tem a sua origem etimológica vinda do idioma Tupi que significa “amontoado de conchas”. Mesmo com os Tupis tendo a sua origem milênios depois. Os Tupis, ao se depararem com esses montes no litoral, já encontraram os ossos em formato de conchas, fossilizados, marcados e eternizados pelo tempo.
Outros Sambaquis, datados de no máximo 2 mil anos atrás, revelaram peças de cerâmica características de tribos mais recentes que habitavam o continente americano, inclusive algumas dessas tribos sendo as mesmas que estavam presentes quando os europeus chegaram no Brasil séculos depois, indicando que essa cultura não teve um fim drástico, mas sim, foi sumindo aos poucos, mesclando-se com outras tribos que desciam da bacia amazônica para o resto do continente. Infelizmente, cerca de 98% da população que habitava o continente americano pré-colonial foi dizimada e muito do material genético e cultural foi destruído, dificultando a identificação e estudos mais aprofundados sobre as populações que criaram esses sítios arqueológicos. Mesmo assim, a riqueza de materiais encontrados nesses concheiros foi um grande passo para entender melhor a origem do ser humano na América e toda a grandeza da história deste continente, que apesar dos esforços de arqueólogos e paleontólogos, ainda segue um mistério para a nossa geração.
O cuidado e a preservação
Muitos desses sítios arqueológicos no Brasil já são tombados como patrimônio histórico pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), alguns já com a devida localização bem sinalizada e com a devida proteção e cuidado. Outros, carecem de mais atenção e conscientização da população sobre o bem histórico que existe em suas proximidades. Um exemplo é o Sambaqui Xangri-lá, localizado no litoral do estado do Rio Grande do Sul. Cercado por casas, em uma pequena cidade litorânea do sul do país, possui pouca sinalização e entusiasmo da população local. Muitos dos moradores desconhecem a importância histórica do deste sítio histórico.
Para algumas pessoas que vivem ao redor, o local é apenas apelidado de “Morrinho dos Ìndios”, outras ao serem questionadas, nem sequer sabem que aquele simples morro guarda uma parte importante do quebra-cabeça da nossa história. Porém, após conversar com alguns habitantes da região e perguntar sobre o que lhes é informado sobre o sítio arqueológico vizinho, nota-se que existe uma carência de conhecimento e instrução sobre a importância do local, algo que deveria ser feito com mais intensidade por parte dos órgãos públicos.
Inclusive na década de 1970, ao ser divulgado que havia sido descoberto um sítio arqueológico com artefatos históricos de povos antigos enterrados na duna, criou-se no imaginário da população das redondezas que haveria uma espécie de ouro escondido por baixo daqueles montes. Isso causou uma espécie de caça ao tesouro desenfreada, só sendo impedida algum tempo depois com a proibição de escavações amadoras no local e limitando o acesso à pesquisadores e pessoas que tinham o intuito de preservar o local. Alguns moradores da região acreditam também que existiriam outros Sambaquis na cidade de Xangri-lá, mas que a construção de casas e prédios podem ter destruído os potenciais lugares de pesquisa.
Para visitar um Sambaqui hoje em dia, basta uma busca rápida na internet e já aparecerão diversas marcações indicando o lugar. Porém, em muitos desses locais o acesso é difícil e pouco sinalizado no local. Alguns necessitam de autorização para entrar, outros estão apenas cercados, mas sem vigilância. Mas é importante ter ciência de que ao visitar um sítio arqueológico desse porte, a preservação e o cuidado devem ser postos em primeiro lugar, afinal, quem protege e conhece a história da humanidade, também estará fazendo um bem para si mesmo.