O Psicodrama é o desejo pela transformação social coletivamente a partir do campo de afeto. Moreno1 (1992) nos diz que para mudar o mundo social, precisamos planejar experimentos sociais de forma a que produzam mudança.

O psicodramatista logo descobre, aquilo que o grupo já sabe, que o subsolo não permite um deslize descuidado, ele é atento e perspicaz, seu trajeto como vida nunca o permitiu ser descuidado e desatento. Mesmo no estado mais eufórico, quando a dor de ser e estar como subsolo, só encontra algum sentido depois de um gole de pinga ou um trago de qualquer outra substância. O Subsolo diz sobre sua própria existência. Mais um amigo se foi, a família só está presente em vagas memorias, só tenho meu orgulho e algumas palavras.

Moreno2 (1999) nos fala de um cuidado ético:

Os membros do grupo são levados progressivamente, em momentos oportunos no decorrer do tratamento, a compreender sua responsabilidade recíproca e se conduzir consequentemente.

É como também nos lembra a sensível organização de alteridade de Lévinas3:

No encontro do rosto, não foi preciso julgar: o outro, o único não suporta julgamento, ele passa diretamente à minha frente, estou com obrigações de fidelidade para com ele.

Rosto que reflete o aparente e o oculto do espelho, que corresponde a construção de um grupo, como grupo psicoterapêutico, como plano de vidas que por alguns instantes se torna um território fértil como amplidão de vida, de cada sujeito presente, do grupo como sujeito. Espelho que reflete o rosto de cada sujeito. Meu, do ego auxiliar e de cada sujeito do grupo. Um sensível jogo de espelhos que não admite julgamento, não admite permanecer no aparente. Que só permite a confecção de fidelidade com o rosto do Outro, que a clínica terapêutica conhece como contrato e vínculo. Rosto do Outro que no espelho reflete o meu rosto e do Outro.

O trabalho psicodramático neste subsolo dispensa o comum relativismo da clínica psicoterapêutica, que individualiza um sujeito que nunca foi individualizado. Como o real, que nunca foi segmentado. Como a racionalidade que nunca esteve separada da sensibilidade. Dicotomias e segmentações que representa antes de tudo, não um trabalho clinico psicoterapêutico, mas sim uma história que ainda obedece e tende a construir um formato de ciência, que por consequência constrói uma tal modernidade. Ciência e modelo de sociedade moderna que representa somente um tipo de ciência e um tipo de sociedade.

Esta mesma ciência que trata o real de forma dicotômica e modela o que é conhecido como sociedade moderna. Sempre produziu híbridos no momento que inventa objetos puros. O real sempre foi interconectado, mesmo antes da internet, os astrônomos chamam isso de microcosmos e os biólogos de evolução aleatória genética. O real nunca foi segmentado, e a ciência ainda hoje obedecida como um código de honra positivista, obedece somente a um modelo de ciência4.

Como lembra Deleuze e Guattari5:

Lo que el escritor dice totalmente solo se vuelve una acción colectiva, y lo que dice o hace es necesariamente político.

O que cada sujeito fala em um grupo terapêutico, o que inclui o diretor, é necessariamente o grupo, ou o coletivo. O que o sujeito fala é sua fala e de todos do grupo. Movimento que revela e esclarece a revolução criadora6 do grupo, quando a dor de um é de todos (do grupo) e só pode ser curada com todos (em grupo).

Uma construção psicoterapêutica que reage e produz coletivamente conteúdos de atravessamentos do terror. Conteúdo que faz os sujeitos construírem um caminhar mais perto do protagonismo e da autonomia não alienada, mas sim atento e intercorrelacionado aos contextos dramático, grupal e social. Atento ao Outro e ao outro-que-si-mesmo3. Compreensão que encontra na epistemologia socionômica os alicerces do trabalho terapêutico com grupo.

A epistemologia socionômica também se alicerça no pressuposto de que o ser humano se estrutura e se desenvolve nas relações humanas. Se o ser humano é um ser em relação, um ser em situação, sua existência está atrelada à coexistência.7

Questão que atravessa este trabalho em todos os momentos, que está tanto para os sujeitos de grupo, quanto para o diretor que trabalha com um grupo psicoterapêutico a partir do Psicodrama. O posicionamento do diretor, o reconhecimento do Tu, que envolve a compreensão da sua presença cotidiana direta e indiretamente, uma intima relação, que no grupo deve ser exercida clinicamente. O diretor em relação com os sujeitos do grupo, tem responsabilidade e papel, o que o torna apto a direcionar decisões e métodos com o grupo; isso se o diretor não esconder sua face e nem fecha os sentidos para as faces do grupo.

Como produtor, é um engenheiro de coordenação e produção (...)ele procura encontrar primeiro o seu público e os seus personagens, extraindo deles o material para um enredo e um roteiro (...) como agente terapêutico, a responsabilidade final pelo valor terapêutico da produção total cai sobre os seus ombros (...) a sua tarefa consistem em fazer os sujeitos atuarem naquele nível de espontaneidade que beneficia o seu equilíbrio total; em servir de contra regra e de ponto para os egos auxiliares; e em instigar o público a uma experiência catártica. Como analista social, usa os egos auxiliares como extensões de si mesmo (...).6

O que Buber8 descreve como livre, traz a noção que hoje é pensada como protagonismo e autonomia, e o que ele traz como face, poder ser pensado com este grupo, como relação dos sujeitos do grupo, com os infinitos “outros” que percorrem o caminho que cada sujeito escolhe construir. Outros que são humanos, contextos e coletivos, e “outros” que são não-humanos, contextos e coletivos, como as substâncias psicoativas que levaram estes sujeitos para uma clínica terapêutica.

O posicionamento do diretor em relação ao subsolo permite tratar o real como um conjunto espesso de realidades que se articulam como sobrevivência, como sentidos que ditam sobre aquilo que passa desapercebido para os olhos eufóricos cotidianos que obedecem um continuo modelo de modernidade caótico. Mostra para aqueles que se atrevem a trabalhar com grupos terapêuticos com o Psicodrama, que o real está para além da fenda da janela do psicoterapeuta.

Como lembra Viveiros de Castro:9

Aceitar a oportunidade e a relevância desta tarefa de “penser outrement” (Foucault) o pensamento – de pensar “outramente”, pensar outra mente, pensar com outras mentes [...].

Pensar com outros corpos, com outros sentidos, com outras racionalidades e sensibilidades. Faz o primeiro passo para construir terapeuticamente novas realidades sensíveis e racionais. Faz emergir do subsolo o que para muitos deveriam ou pareciam impossíveis. Ser um psicoterapeuta que fala a partir do subsolo é estar presente a todo instante com o impossível e com o possível. Não tão distante do Moreno dos Jardins de Viena e do Moreno do Teatro da Espontaneidade.

Relatos de um psicodramatista: abre e fecha parênteses

Para que ser psicodramatista mesmo? Pergunta que nos segue e que seguimos constantemente. Pergunta que é nossa e de muitos outros que passam por uma formação em psicodrama. Por isso, buscamos refletir um pouco sobre o que esta pergunta permite pensar.

Ser um psicodramatista clínico que trabalha com grupos nos tempos de hoje é muito parecido com o movimento audacioso de Moreno quando visitava os Jardins de Viena ou quando apresentou o Teatro da Espontaneidade e o Teatro Terapêutico6. Um contexto, claro, diferente do clima temeroso e angustiante dos tempos da segunda guerra mundial e pós segunda guerra mundial. Mas, que ainda hoje vivemos, sente-se as angústias e temores por cima e de baixo da pele, e nestes sentidos equivalemos ao período em que Moreno buscou construir revoluções a partir de pequenos grupos.

Moreno6 replicou a seguinte questão, importante para aqueles que até hoje caminham com ele:

Essa guerra contra os fantasmas exige ação, não só da parte de indivíduos isolados e de pequenos grupos, mas também das grandes massas humanas. Essa guerra – dentro de nós próprios – é a Revolução Criadora.

Ser um psicodramatista clínico que trabalha com grupos psicoterapêutico está então perto de dar continuação a provocação de Moreno; pedido que ecoa aos ouvidos mais sensíveis à realidade cotidiana. Cuidar, ou ser audacioso sensivelmente e racionalmente para trabalhar com grupos guiado pela possibilidade concreta da Revolução Criadora é a organização elementar e primeira para poder caminhar, e para poder ser um psicodramatista clinico que trabalha com grupos. Uma responsabilidade que Moreno deixa como provocação e direção.

Assim, ser psicodramatista clínico que trabalha com grupos é olhar para além da adormecida realidade muitas vezes naturalizada. Ver as violências e as soluções que sobrevivem por debaixo da ilusória planície homogênea mantida como realidade.

A ação de ser psicodramatista como um ato revolucionário, um ato que caminha para além da viciante organização social que hoje é direcionada como vida. Ou melhor, a “modernidade”, que constrói somente duas coisas, a exploração do homem em relação ao homem, e a exploração do homem em relação a natureza4. Uma rede de explorações guiada cada vez mais pelas fantasias que a modernidade constrói como sentido de vida. Que acalma somente seus fantasmas com um remédio psiquiátrico ou um discurso conservador de medo.

Vamos fechar este parêntese, apenas simbolicamente pois nunca será fechado, visto que será falado constantemente como rasura10. O ato de ser psicodramatista que trabalha com grupos hoje, está mais perto do Moreno de Viena e do Teatro da Espontaneidade, está mais perto do incomodo e da angústia que faz querer se levantar, mesmo quando tudo pede para continuar acreditando nas imagens ilusórias dos espelhos cotidianos que incita o vício em uma realidade adormecida. Uma realidade paralisada como uma barata no canto da parede. Comparação preciosa com a barata do Kafka11.

A ação - pensar/fazer/sentir - do psicodramatista que trabalha com grupos, principalmente com grupos do subsolo, é caminhar cotidianamente compreendendo que o subsolo geralmente é mais rico que o solo; ou melhor, que o subsolo geralmente sustenta a vida do solo.

Trabalhar com grupos é ação que reage aos diferentes e infinitos modos de existir como amplidão de vida, e não como domesticação psicopatológica, mas sim como ação que inverte a pastosa realidade cadenciada por mecanismos de normalizações e naturalizações. A ação de ser Psicodramatista é caminhar ampliando cada vez mais sua visão de mundo, entendendo que cada ser vivo e que cada realidade é um microcosmo.

Refazer o próprio homem, refazer novas realidades, construir novos mundos como possibilidade real de vida, que inverte e transforma os escombros de um projeto de modernidade, o robô, que nasce no século XIX. Refazer que permite as riquezas humanas do subsolo, seus conhecimentos, suas sensibilidades e suas criações, construírem um lugar próprio de vida.

Notas

1 Moreno, J. Quem Sobreviverá? Fundamentos da Sociometria, Psicoterapia de Grupo e Sociodrama. Dimensão: Goiânia, 1992.
2 Moreno, J. Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. São Paulo, SP: Editora Mestre Jou, 1959; Campinas, SP: Livro Pleno, 1999.
3 Lévinas, E. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. 2ª. Edição, Editora Vozes: Petrópolis, 2005.
4 Latour, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. 4ª. Reimpressão, Editora 34: Rio de Janeiro, 2008.
5 Deleuze, G e Guattari, F. Kafka: por uma literatura menor. Ediciones Era: México, 1978.
6 Moreno, J. Psicodrama. Cultrix: São Paulo, 1975.
7 Nery, M e Costa, L. Desafios para uma epistemologia da pesquisa com grupos. Revsita Aletheia, n.25, p.123-138, jan./jun. 2007.
8 Buber, M. Eu e Tu. Oitava Edição. Editora Centauro: São Paulo, 2004.
9 Viveiros de Castro, e Danowski, D. Há um mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os fins. Cultura e Barbarie: Instituto Socioambiental: Florianópolis, 2017.
10 Derrida, J. Posições. Editora Autêntica: Belo Horizonte, 2001.
11 Kafka, F. Metamorfose. Companhia das Letras: São Paulo, 1997.