O ensaio segue a pergunta: como produzir uma clínica que compreende o sensível e a subjetividade como potências que atravessam o terror? Dentre as muitas respostas, parto do movimento ético1 do psicodrama de grupo no campo psicoterápico para pensar uma clínica que vem, ou melhor, uma clínica que escolhe se posicionar frente as realidades que muitas vezes a clínica de desfez.

Uma clínica não cercada por anseios psicopatológicos e sedimentada por perspectivas de humanidade que hoje são questionadas quando vemos o monstro que vos fala de Preciado2, os pensamentos anticoloniais e pós-coloniais, a máquina neoliberal raptando corpos, afetos e sobrevivências, e a imagem cada vez mais apavorante da era do Antropoceno3.

Pois, uma clínica que vem deve se posiciona em meio a tempestade que já existe, e se mover com a tempestade buscando saídas por entre ruínas e fagulhas de esperanças e liberdades. Vivemos um mundo “pós-Covid”, entre guerras, genocídios, massacres e normalização de violências autoritárias, ao mesmo tempo atravessado pelas mudanças climáticas. E sim, a clínica é chamada para compor o grupo de seres que desejam produzir outras realidades e formas de vida4.

E aqui entra o psicodrama de grupo quando acende a potência coletiva de cuidado, pois cuidar em grupo, por todas as dimensões possíveis, das vísceras até a pele, confere na condição de emergir justiças sociais e justiças ecológicas. Justiças fomentada pelo sensível, a sensibilidade e a produção de subjetividades.

Nos consultórios, ou em qualquer outro território, a clínica é social, e precisa reconhecer isso como crítica e transformação. Sabendo que a clínica psicodramática é um espaço político, quando reconhecida como território de transformações sociais.

Podemos enxergar e acionar os mundos a partir da clínica, pois são vários mundos que se relacionam todos os dias no campo clínico. Mundos que ao menor descuido é possível fomentar justiças ou cair em ciladas normalizadoras e naturalizadas de doença ou cura. Pois, se vivemos em um mundo neoliberal onde os corpos e os afetos são canibalizados todos os dias, o desejo central da clínica deveria ser a revolução e não seguir o fluxo canibal.

Pode causar estranheza para muitos pensar a clínica como agente político, e atravessada por saberes que parecem distante à clínica, dois exemplos: o antropoceno ou o populismo autoritário. Mas, a clínica é e sempre foi política, pois caminha e produz perspectivas de vida e subjetividades. No primeiro momento que se escolhe um repertório teórico e metodológico, aí já existe uma perspectiva de produção subjetiva, ou melhor, política.

Sabendo que o interno não é tão interno e o externo não é tão externo, a clínica historicamente reproduz a imagem do homem moderno do humanismo, independente para que lado for, mas será essa imagem que ainda devemos continuar a reproduzir, já que essa imagem é ainda a imagem que proporciona os fins de mundos?

Imagino, da presença absurda de imaginar, uma clínica que vem disposta e aberta para atravessar ons fins dos mundos, e apreender e produzir outras formas de vidas, muitas dessas que caminham pela terra bem antes do nascimento da psicologia, e outras que nascem a cada dia se posicionando e criticando os domínios dos corpos e do respirar.

É claro que qualquer pessoa que trabalha no campo psicoterápico vai dizer que a clínica é um epicentro onde se articula a sociedade, mas como estamos reagindo a isso? E que reação o tempo contemporâneo pede?

Se Moreno5, produz um Psicodrama articulado pela presença do grupo como movimento coletivo de afeto para ultrapassar os fantasmas e as máquinas, talvez seja desse chão do grupo que podemos aceitar a clínica como espaço político e produzir mundos para além dos fins dos mundos.

Notas

1 Espinosa, B. Ética. Editora Autentica: Belo Horizonte, 2013.
2 Preciado, P. Eu sou o monstro que vos fala. Editora Zahar, 2022.
3 Latour, B. Onde aterrar?: como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro. Editora Bazar do Tempo, 2020.
4 Sztulwark, D. A ofensiva do sensível: neoliberalismo, populismo e o reverso da política. Editora Elefante: São Paulo, 2023.
5 Moreno, J. Psicodrama. Editora Cultrix: São Paulo, 1975.