Não lembro a partir de que momento, quando cresci e fui tomando consciência da minha alimentação, a proteína animal era o centro do prato. É quase como se fosse sempre assim. O clássico prato feito, nacionalmente em sua maioria composto pela mistura de arroz e feijão, com as variações regionais, segue também com a proteína sendo o item que você altera, o restante é tido como meros acompanhamentos. Comecei a pensar sobre isso quando meu irmão, vegetariano, não consumia mais animais. Me vinha o questionamento: “vai comer o que então?”. A vida estudando a alimentação me trouxe a simples resposta: “todo o restante do prato”.

Já na universidade, às vezes os questionamentos sobre como lidamos com os vegetais me rondavam. Lembro que um ponto-chave para o meu entendimento e que me fez crescer muito como profissional, verdadeiramente cozinheira, foi ir a um Congresso que uma amiga havia me recomendado que teria alguns palestrantes que eu já acompanhava por blog e redes sociais, o I Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo (ENUVA), que aconteceu em Recife em 2019. Eu era vegana ou vegetariana na época? Não. Mas sempre fui uma cozinheira curiosa, que procura entender tudo que me intriga. Lembro que, na época, por viver numa bolha onde sempre observava pessoas vegetarianas brancas e ricas, julgava que só para elas essa escolha alimentar (e política) era possível.

Fui ao congresso e vi olhares, como de Sandra Guimarães, Chef Ruan Felix e Juliana Gomes, sobre a perspectiva de protagonismo vegetal, escolhas alimentares, antiespecismo, agroecologia e veganismo popular que me trouxeram luz sobre tais temáticas. Saí de lá me desafiando como cozinheira a tentar explorar ao máximo os vegetais e tudo que não fosse centralizado na proteína animal. E descolonizar o que eu tinha aprendido nas bases da culinária da faculdade, para conseguir usar as técnicas aprendidas, não só em carnes, mas, sim, em tudo que se pode comer.

Ao longo dessa jornada, me vi criar uma máxima, que usei primeiro para vida e depois repassei aos meus alunos, que é: “Não existe vegetal ruim. Você só não sabe a forma que gosta de comê-lo ainda”. No meu caso, maxixe e quiabo, só via sempre sendo servidos cozidos, não me agradando em sabor ou textura. Hoje, sou devota dos picles de maxixe e do quiabo grelhado.

Retomando ao pensamento inicial, acerca de onde vem a ideia da proteína como protagonista, historicamente, isso se deve a base ensinada e difundida da gastronomia ocidental, focada na Europa, em especial, pela cozinha francesa. Quando olhamos para o Oriente, a história contada além da proteína, já possui maior protagonismo.

No Brasil, antes dos invasores portugueses, nas cartas de Pero Vaz de Caminha, transcritas na obra do historiador Luís Câmara Cascudo, História da Alimentação do Brasil, os registros apontam que os nativos consumiam somente animais já pertencentes a fauna local. Esse consumo era tido de forma não predatória, no sentido de que não causava o desequilíbrio ambiental que possuímos presentemente, e os animais, para serem consumidos, eram caçados e, posteriormente, alguns povos começaram a domesticá-los para consumo próprio. Mas nada comparado ao que se veio, através dos colonos, com bovinos, suínos e galináceos.

Centenas de anos depois, atualmente, compramos cortes de animais embalados no mercado ou em feiras e estamos, em grande maioria, bem distantes dos animais consumidos na mesa. Já de frutos da terra, temos: leguminosas, oleaginosas, cereais e verduras, que também nos nutrem, mas socialmente não são tão valorizadas, ressalva para contextos fit. É até curioso pensar que exatamente o produto de qual a produção mais temos distância, ainda é o que majoritariamente exerce papel principal nos nossos pratos.

Em decorrência desses e outros fatores socioculturais, é difícil, a princípio, visualizar o prato sem a proteína como protagonista. Reforçado também por ser um produto de alto valor agregado, onde a escolha de poder ou não consumir, muitas vezes, perpassa diretamente a desigualdade social que temos no país, reforçada pelo “quem pode escolher seu alimento”. E quando se pode, diante de tanto, consumir, escolhe-se muitas vezes pelo papel social que representa “ter carne pra comer”. Mas partilho aqui a reflexão, que como cozinheira, me inquietou. Diante da possibilidade de ver além, e romper com a cultura apenas reproduzida, afinal, comida é algo cultural. O nosso grande “porquê” está na nossa colonização. Alguém quis que fosse assim e seguimos. Como seres pensantes, que rupturas são possíveis?

Perante a reverberação da história, com costumes e seus símbolos, temos, de fato, a proteína ali, ocupando local central. Uma vez entendendo o porquê de estar onde está, e por quem foi colocada ali, questionamos para transcender e ampliar nossa autonomia alimentar e ainda, descolonizar o que culturalmente foi pré-estabelecido pra nossa alimentação. Essa é uma forma de transgredir esse paradigma e pensar no que temos em construção, com uma gastronomia vegetal.

Notas

1 Brasil. 2014. Guia Alimentar para População Brasileira. 2nd ed.; M. Saúde.
2 Cascudo, Luiz da Câmara. História da Alimentação no Brasil. São Paulo:Companhia Editora Nacional, 1967.