Em uma das inúmeras passagens hilariantes do livro A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, do irlandês Laurence Stern (1713–1768), dois personagens discutem se o batismo é válido, caso o padre, ao proferir as palavras com que batiza a criança, comete um erro gramatical.
A discussão tem por base um fato que teria ocorrido na Inglaterra no século 16, anteriormente à reforma anglicana, que permitiu que as palavras com que se oficia o batismo deixassem de ser obrigatoriamente proferidas em latim.
O fato se resume no seguinte: um padre, ao batizar uma criança, teria dito “Ego te baptizo in nomine Patriae et Filia et Spiritum Sanctus”, em vez de “Ego te baptizo in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti" (Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo). Embora as palavras sejam as mesmas, a frase dita pelo padre apresenta erro na declinação das palavras; um erro gramatical, portanto.
Um dos personagens apresenta argumentos que sustentam a nulidade do batismo, enquanto o outro argumenta que erros de natureza gramatical não têm o condão de tornar o batismo inválido. O que defende a nulidade apoia-se no fato de que o padre não disse a frase como deveria ser dita. O outro alega que se trata apenas de um erro na declinação das palavras e que o radical delas permanece intato, de modo que as palavras continuam a ter o mesmo sentido e que o erro, apenas na declinação, não seria suficiente para invalidar o batismo. Uma observação: o erro do padre, ao pronunciar a frase em latim, seria algo como um erro de concordância em português.
A passagem, como tantas outras do Tristram Shandy, é cômica e remete a uma questão séria tratada pelo filósofo da linguagem John Langshaw Austin (1911–1960), da Universidade de Harvard, cujas ideias que expõem em seu livro How to do things with words (Como fazer coisas com palavras) são bastante conhecidas. A passagem do livro de Stern pode ser analisada a partir da teoria dos atos de fala (speech acts) exposta nessa obra, especialmente sobre o que Austin fala sobre os atos de fala performativos.
O filósofo britânico sustenta que usamos a linguagem não só para falar das coisas, mas também para fazer coisas com elas, ou seja, há casos em que dizer é fazer. São esses atos de linguagem que Austin chama de performativos. Quando, num tribunal, ao proferir a sentença, o juiz diz “Eu condeno o réu a uma pena de dez anos de reclusão”, ele não está apenas dizendo que condena o réu, ele está de fato condenando o réu. Ditas essas palavras, o réu está efetivamente condenado. É evidente que, para que o dizer se torne um fazer, é necessário que quem profere o ato de fala performativo esteja investido de um poder para tal. A frase “eu condeno o réu a uma pena de dez anos de reclusão” não produziria qualquer efeito se fosse pronunciada por uma pessoa que não fosse juiz ou por um juiz que não fosse o competente para julgar o réu.
Os atos de fala performativos ocorrem em diversas situações. Alguém que diz “juro dizer a verdade” não está apenas dizendo que jura, está de fato praticando a ação de jurar. A mesma coisa ocorre em atos de linguagem do tipo “Nomeio Fulano meu procurador”, “Aposto 50 reais como ela será aprovada no vestibular”.
Os verbos performativos estão sempre na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Uma frase como “juro dizer a verdade” é performativa, mas a frase “a testemunha jurou dizer a verdade” não é.
Na cômica passagem do Tristram Shandy, o padre, uma pessoa investida do poder de batizar, disse “Ego te baptizo...” (Eu te batizo...). Valendo-se de um verbo performativo, teria, portanto, executado a ação de batizar. No entanto, na sequência da frase, embora use as palavras corretas, comete alguns erros gramaticais, instalando a polêmica.
A história do padre que profere as palavras erradas na hora do batismo faz parte de uma hora obra ficcional. Se não é verdadeiro, é verossímil e pode parecer algo inusitado. Um acontecimento muito parecido com o que Sterne narra no Tristram Shandy aconteceu realmente em 2022, no Arizona, Estados Unidos, e envolveu um padre brasileiro.
A edição online do jornal The Guardian de 16 de fevereiro de 2022 informa que milhares de batismos realizados numa igreja católica no Arizona foram invalidados porque um padre, o brasileiro Andres Arango, usou palavras erradas ao realizar a cerimônia.
O erro consistia em ele ter usado a forma verbal do verbo batizar na primeira pessoa do plural (nós) no lugar da primeira pessoa do singular (eu). Como afirmei, a característica dos verbos performativos é sempre estarem na primeira pessoa do singular do presente do indicativo.
A anulação dos batismos teve por fundamento uma determinação da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano de 2020 que determina que “os batismos administrados com fórmulas modificadas são inválidos, incluindo: ‘Nós te batizamos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo’”, anunciou o Vaticano.
“O problema de usar 'nós' é que não é a comunidade que batiza uma pessoa, mas sim, é Cristo, e somente Ele, quem preside todos os sacramentos e, portanto, é Cristo Jesus quem batiza”, esclareceu o bispo de Phoenix, Thomas Olmsted.
O fato de o batismo ser invalidado pode acarretar que atos posteriores a ele possam também ser invalidados. Para evitar transtornos e por cautela, é sempre bom observar atentamente as palavras e a construção de frases performativas para que o dizer se torne de fato em um fazer.
Descubra as hilariantes passagens do livro "A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy", de Laurence Stern, e as sérias questões filosóficas que ele aborda.