Em julho de 2022 pude participar de uma sequência de rituais de iniciação no candomblé enquanto membro e iniciado de um terreiro. Durante esse período — cerca de vinte e quatro dias — todas as pessoas envolvidas permaneceram no terreiro, se adequando a uma lida não só litúrgica, mas também doméstica. O grupo de três iaôs — termo que identifica os noviços e noviças — passou por um período de maior liberdade, circulando pelo terreno da propriedade, e então por um período de dezesseis dias de reclusão absoluta, restritos a um quarto — o quarto de axé, também chamado de roncó.
O noviço durante a iniciação passa por um processo de desidentificação, abandonando seu nome civil e recebendo um novo nome ritualístico ao final. A festa pública, culminância dos ritos, tem justamente esse nome, Oruncó Iaô, Dia do Nome, por apresentar à comunidade religiosa seus novos membros e os nomes pelos quais serão reconhecidos. Antes, porém, durante o período de reclusão, são identificados pelo termo iaô e também pela divindade à qual serão consagrados. Esse barco — nome tradicionalmente dado ao grupo que se inicia junto — foi composto por um iaô de Oxalá, um iaô de Ogum e uma iaô de Oxumarê.
Desde os primeiros dias o convívio intenso revelou tensões e conflitos entre diferentes expectativas do que se espera de um iaô, tanto por parte dos próprios, quanto por parte de todos os outros membros do terreiro envolvidos no processo iniciático.
O candomblé é uma religião iniciática, sintetizando diferentes valores e formando uma complexa organização sociorreligiosa. Chefiado por uma ialorixá ou por um babalorixá — também conhecidos, respectivamente, como mãe-de-santo e pai-de-santo —, o terreiro de candomblé se estrutura em diferentes níveis hierárquicos em que a iniciação permite participação do indivíduo na liturgia.
Ao longo dos primeiros anos de iniciado, o indivíduo é conhecido como iaô, período que deve durar minimamente sete anos, correspondente ao tempo de vivência e acúmulo de experiência e saberes necessários para se tornar um ebome, um mais velho. As etapas dentro da vida religiosa do candomblé são marcadas pelas obrigações — realizadas após um ano do começo da iniciação, três anos e, finalmente, sete anos —, caracterizadas por uma série de rituais dispendiosos, o que comumente ocasiona atraso nas etapas do ciclo. Não é incomum, por exemplo, que um iniciado tome sua obrigação de sete anos com mais de catorze anos de iniciação.
O indivíduo, então, tem seus primeiros contatos com o terreiro e ingressa na condição de abiã, limitado à esfera das atividades civis. Inicia-se, passando à condição de iaô por sete anos e então, finalizada esta obrigação, adquire o status de ebome. São os ebomes quem cuidam dos preparativos da iniciação e também dos próprios iaôs no período de recolhimento. Confinados, estes não fazem sua própria comida nem tomam seu próprio banho sem auxílio dos mais velhos. Estabelece-se uma relação de dependência e cuidado que gera suas tensões e conflitos.
Espera-se do iaô em período de reclusão uma atitude de sujeição, passividade, silêncio e introspecção. É um momento entendido como sagrado, solene, de conexão com a divindade e, principalmente, afastamento de atividades, questões e preocupações externas. O isolamento radicaliza uma separação entre mundo profano e mundo sagrado, em que os dois não devem se comunicar, sob risco para a plena execução do ritual.
Há uma metamorfose, uma morte ritual do indivíduo profano e o renascimento enquanto indivíduo religioso, inclusive com novo nome. O período de afastamento da vida profana é caracterizado como necessário à gestação desse novo indivíduo. De fato, a própria iniciação é tratada como gestação e o quarto onde ficam reclusos os iaôs como útero.
A iniciação do candomblé caracteriza uma mudança de estado em termos de pertencimento. Constitui-se como o ritual necessário e indispensável para ingressar no terreiro de candomblé e também na comunidade religiosa, onde o indivíduo passará a se apresentar como feito — iniciado.
A reclusão da iniciação marca o período de liminaridade, conforme o etnólogo francês Arnold Van Gennep2, em que os indivíduos ainda não são plenamente iniciados — não passaram por todos os rituais propiciatórios, tampouco receberam seus nomes —, mas também não são mais “civis”, pois foram destacados de seu mundo cotidiano. É nesse período, perigoso, que ocorre a metamorfose.
O perigo consiste na irrupção de um mundo no outro. A filosofia do candomblé é clara: ọ̀gbẹ̀ri nko mọ̀ màrìwò — o não iniciado não pode conhecer os segredos do mariô. Este é a folha de dendezeiro desfiada, formando uma franja, comumente pendurado nas portas dos terreiros e seus cômodos, indicando espaços sagrados; faz a separação entre os dois mundos, indicando quem pode estar nesses espaços e de que maneira. Não se trata somente de uma separação física — não iniciados ocasionalmente circulam em alguns desses espaços —, mas se refere à separação de estado, de condição. O iniciado é aquele que passou pelo processo pedagógico de internalização dos símbolos e moralidades referentes à tradição do candomblé.
O candomblé, assim como se espera de todo sistema religioso, é um modelo normativo para a vida. O objetivo da iniciação é fornecer um sentido do mundo e também uma direção para este, produzindo disposições e motivações. A religião é, conforme Clifford Geertz1:
[...] um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da [...] formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e [...] vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que [...] as disposições e motivações parecem singularmente realistas.
É a normatividade da religião que permite que ela exista; é a normatividade que permite a vida em coletividade. Entender a religião como “modelo para” — conforme proposto por Geertz —, é entender que ela produz uma tendência persistente nos indivíduos que também se vincula a uma dimensão emocional. E através da organização da existência, organiza o mundo; as disposições e motivações mencionadas pelo autor, na interação entre a visão de mundo e a ordem individual organizam o ser e o estar no mundo. A normatização é também uma naturalização, ocultando os mecanismos de subjetivação e objetivação que regulam o mundo, sendo assim um “modelo de”, se ancorando no cotidiano e explicando-o.
Se o ritual é o que organiza e estabelece ordem nesse fluxo de passagem, os ebomes começavam a especular que havia algo de errado, pois os iaôs não estavam “virando” iaôs, uma vez que não demonstravam reconhecer as normas. Os mais velhos começaram, então, a se perguntar até que ponto a iniciação estaria comprometida, ou mesmo o que eles, ebomes, estariam fazendo de errado. E nisso me incluo.
No exemplo em questão, os dois homens e a moça — suas idades variavam entre vinte e cinco e trinta e oito anos — chegaram ao terreiro com suas personalidades, nomes civis e bagagem de vida. Nenhum dos três ignorava a complexidade do ritual e suas dificuldades: teriam severas restrições alimentares por alguns dias e comeriam com a mão, dormiriam em esteira, tomariam banho de balde de madrugada ao ar livre e ficariam confinados. E sempre sob vigília dos mais velhos do terreiro.
Os ebomes que auxiliariam na obrigação, sabiam que o barco “prometia”; o iaô de Ogum e a iaô de Oxumarê eram conhecidos no terreiro por seus “temperamentos difíceis”. E, em alguma medida, todos foram tomados pela ilusão de que o curto período da iniciação operaria alguma magia; uma ruptura total aconteceria, produzindo mudança plena, seres novos e celestiais. O que não aconteceu. Os dois continuaram apresentando conduta que não condizia com o que se esperava de um iaô. Reclamavam, tentavam adivinhar o que se passava do lado de fora — as atividades dos ebomes, hora em que iam dormir e o que almoçavam —, riam alto, questionavam horários e contestavam as diretrizes que lhes eram passadas.
Os três não ignoravam a conduta esperada deles, pois conviviam com outros iaôs no terreiro. Especialmente a iaô de Oxumarê, terceira geração do candomblé em sua família biológica. O próprio iaô de Oxalá, que antes da iniciação se apresentava como um homem calmo e tranquilo, já previamente próximo ao que se esperava de um iaô, se mostrou de difícil trato, assim como os demais. Caracterizava-se assim um verdadeiro barco de iaôs, este sendo conhecido pelos fortes vínculos criados pelos indivíduos na iniciação. O confinamento em comum, as restrições e incômodos e o fato de dormirem e acordarem uns com os outros produzem um tipo específico de solidariedade por compartilharem a mesma condição. Esta é a forma de “sobrevivência” de todo barco, onde os indivíduos colocam de lado suas diferenças e se apegam ao que os une.
Os ebomes compreendiam a união dos iaôs entre si, pois é característico da maioria dos barcos de iniciação, até mesmo a mudança do comportamento do iaô de Oxalá, mas na época não compreendíamos o que parecia errado no processo.
Ocorreu-me então, um aspecto que antes me passou despercebido: em treze anos de existência do terreiro foi a primeira vez que o babalorixá não esteve envolvido o tempo todo na lida direta com os iaôs, ficando, inclusive, quase uma semana fora do terreiro — e os iaôs percebiam e comentavam: “O pai-de-santo não está aí, né? Não temos ouvido a voz dele”. Pensar a figura de poder do pai-de-santo a partir da ideia de disciplina religiosa foi a virada de chave para reflexão da situação.
O babalorixá é o maior guardatário do conhecimento do terreiro, ao qual todos recorrem. É dele que emana a autoridade, inclusive para flexibilizar ou não determinadas regras. Se, para o antropólogo árabe Talal Asad3, é a disciplina que constrói sujeitos religiosos e essa é produzida por sujeitos de autoridade, os iaôs não identificavam nos ebomes sujeitos de autoridade. Isso se atesta quando, relembrando os momentos de julho, os períodos em que o pai-de-santo se colocava em contato com os iaôs eram os mais tranquilos.
Para Talal Asad, é o poder quem explica a obediência e sujeição do indivíduo às práticas religiosas. É o exercício da disciplina que vai inculcar nos indivíduos, de maneira profunda, as moralidades religiosas, inclusive a obediência a elas. A falta de aderência às regras, ao final das contas, é mais um problema de disciplina do que conhecimento e aprendizagem das regras. As regras eram conhecidas dos iaôs — a experiência performática dos outros iaôs do terreiro e os próprios ensinamentos objetivos passados davam conta disso —, o problema era a vontade de obedecer, conforme Talal Asad. Esta é construída a partir da disciplina, que produz sujeitos religiosos. O barco, então, não se comportava como iaô diante dos ebomes por não reconhecer nestes sujeitos de autoridade.
Dessa forma, pude reposicionar expectativas e refletir sobre um ritual religioso, considerando aspectos mais completos e complexos de uma religião de que faço parte há mais de duas décadas. Foi possível vislumbrar o imbricamento das relações de poder que constroem o sujeito religioso durante o ritual de iniciação. Conforme Talal Asad, é imprescindível à análise do ritual e da construção da identidade religiosa a análise das relações de poder.
Independentemente da forma como os indivíduos passam pelo ritual, este tem função de manutenção do grupo religioso. O período de liminaridade é marcado pela produção de indivíduos religiosos. Essa ideia se reforça ainda mais se pensarmos no próprio período do indivíduo enquanto iaô — mínimo de sete anos — como liminar. O que parecia ser um problema de aprendizagem se mostrou um problema de disciplina. O aprendizado estava ocorrendo. Faltava a vontade de obedecer ao aprendizado.
Uma reflexão mais abrangente deve considerar não apenas as relações de poder entre os iaôs e os ebomes, mas sim destes com o próprio babalorixá. O não reconhecimento dos ebomes como figuras de autoridade pode ser revelador da concorrência de poder entre os mais velhos. De todo modo, a estrutura hierárquica do candomblé é a base de sua organização social e analisar a organização social de um grupo é identificar os quadros que dão institucionalidade à vida social, sendo imprescindíveis à densidade da compreensão das relações sociais. E essa análise passa, necessariamente, por relações de poder, pois estas são constitutivas dos grupos.
Notas
1 Geertz, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2017.
2 Gennep, Arnold van. Os ritos de passagem. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
3 Asad, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in christianity and islam. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993.