Criado em 2012, o Cordão da Mentira é um bloco carnavalesco de intervenção estética que, de modo bem criativo, versa e canta sobre temas cruciais para uma real transformação da sociedade brasileira. É formado por sambistas, grupos de teatro, coletivos culturais e artísticos e militantes de movimentos sociais.
O bloco desfilou pela primeira vez em 2012 relatando as heranças da ditadura em nosso cotidiano. Desde então vai para as ruas todos os anos discutindo a violência de Estado, a opressão contra as classes populares no Brasil e, também, denunciar as mentiras que constituem o Brasil contemporâneo e os massacres históricos contra o povo brasileiro no passado e no presente.
Neste ano o Cordão sairá às ruas com um duplo desafio: lembrará o aniversário de 60 anos do golpe de 1964, e a tentativa de golpe de 2023. Mas, ao mesmo tempo, denunciará a continuidade das matanças do Estado brasileiro nas periferias, zonas rurais e florestas brasileiras ao longo de todo o processo de redemocratização do país.
A ala musical do Cordão neste ano será composta por músicos importantes de São Paulo como Douglas Germano, Roberta Oliveira, Bel Borges, Renato Martins, Selito SD e outros sambistas de diversas agremiações. Contará também com um time de peso no acompanhamento musical. A bateria será puxada por Mestre Tiago Praxedes. Haverá diversas intervenções teatrais e visuais ao longo do percurso do desfile.
O enredo destacará também o horror do genocídio palestino e sua relação com as matanças em nossas periferias, discutirá a violência e seletividade racista do encarceramento em massa, a luta de movimentos de familiares contra a violência de Estado de todo o Brasil, apontando para a Operação Escudo / Operação Verão e suas dezenas de execuções.
O Cordão homenageará militantes das lutas sociais brasileiras que estarão presentes no ato, como Milton Barbosa do MNU, Padre Julio Lancelotti, Rose Nogueira, sobrevivente do cárcere na ditadura, presa e torturada no Deops pela ditadura militar em 1969, hoje é presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo. A fundadora do movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, também será homenageada do Cordão da Mentira.
As Mães de Maio são as madrinhas do Cordão e puxarão o cortejo. O movimento é uma rede de mães, familiares e amigos(as) de vítimas da violência do Estado, situado em São Paulo, sobretudo na capital e na Baixada Santista. Formado a partir dos chamados Crimes de Maio de 2006, o grupo tem como missão lutar pela verdade, pela memória e por justiça para todas as vítimas da violência discriminatória, institucional e policial contra a população pobre, negra, periférica e movimentos sociais brasileiros, de ontem e de hoje. Conversei com a Débora sobre ditadura, violência policial no Brasil e a importância de manifestações culturais como o Cordão da Mentira.
Meer: O que mudou desde o primeiro evento do Cordão em 2012 para 2024?
Débora Maria da Silva: Sou fundadora e coordenadora do Movimento Mães de Maio e mãe de uma das vítimas do massacre de Maio de 2006, perdi meu filho Edson Rogério Silva dos Santos no dia 15 de maio de 2006. Após seis anos da morte dele, fomos convidadas para participar do Cordão da Mentira, lançamento desse bloco muito potente que faz uma discussão teatral com a participação de familiares de vitimas da ditadura.
A gente vem com um viés que é o espelho de uma ditadura que nunca acabou. Os algozes do passado sobreviveram e ensinam os algozes do presente, fato, se não fosse isso, não existiria as Mães de Maio, o massacre de maio com todo requinte de maldade e desaparecimentos forçados.
Participamos em 2012 e foi um marco. A gente arrasta centenas de pessoas pelas ruas com comprometimento ímpar. No segundo ano foi uma homenagem aos nossos filhos, falando da democracia. E de lá para cá o Cordão da Mentira passou a ser um fortalecimento da nossa luta para o ano inteiro. É impressionante como o Cordão da Mentira alimenta nossa auto-estima ao longo desses 12 anos percorrendo as ruas de São Paulo.
Nos 10 anos dos crimes de maio, em 2016, também foi um marco para nós. Foi o encontro de 3 lutas: o passado, o presente e os secundaristas que também ganharam as ruas, ocupando as escolas, então para nós, ali no Patio do Colégio onde nos encontramos com os secundaristas, foi como se os nossos filhos houvessem ressuscitado, um encontro muito potente e o Cordão veio com muita sabedoria, com as intervenções teatrais. Nós sempre abraçamos essa luta junto com a cultura, que é muito presente no nosso caminhar, a cultura é essencial, ela mostra a realidade, a nossa realidade.
O Cordão da Mentira, é uma ação extremamente necessária nesses tempos sombrios o qual estamos atravessando em todo Brasil, um Estado violento, de excessão, e também gritando que a ditadura ainda não acabou e que ela está presente dentro das favelas e nas periferias.
Meer: Por que você acha que a ditadura nunca acabou e quando ela acabará?
Débora Maria da Silva: Para nós a ditadura nunca acabou, se a ditadura nunca acabou a violência também nunca acabou. Só acabará quando a policia militar não existir mais.
A gente não pode achar natural viver num estado democrático de direito com uma policia que tenha carta branca para matar. Temos uma policia que ainda tortura, oprime, encarcera, estamos caminhando para sermos o terceiro pais com mais encarcerados do mundo e isso é assustador.
Como foi possível matar mais de 600 jovens num espaço de uma semana?! E todos os inquéritos arquivados, sem investigação. Em apenas uma semana, de 12 a 19 de Maio de 2006, inclusive é lei no Estado de São Paulo, nos 645 municípios, a semana de lembrança dos assassinatos desses meninos.
Meer: Mudou alguma coisa nos ultimos anos?
Débora: Falar que mudou… Não mudou nada. A gente avança com algumas politicas públicas de reparação, mas bem acanhadas. É vergonhoso isso, a polícia que mais mata no planeta é a brasileira, o Brasil é um dos países que mais viola os direitos humanos, é o pais onde mais mata na América latina, violação dos direitos humanos, as pessoas perderam o direito a vida.
A gente sabe que tem o artigo quinto da constituinte que diz que o Estado brasileiro tem de zelar, mas é um dos maiores violadores, e o judiciário não respeita essa carta magna quando ele pede o arquivamento de um crime. Nós não somos “apenas” vitimas de quem aperta o gatilho, mas sim desse sistema judiciário onde a gente tem uma criação de um ministério público que tem o dever, que nasceu para fazer o controle dessa policia e não faz.
Falar que a violência acabou seria negar a morte do meu filho, a morte de mais de 60 mil jovens no ano de 2006.
A violência foi caindo um pouco, também por causa do Movimento das Mães de Maio e das mães dos outros Estados brasileiros que se levantaram para dizer e cobrar para que essas mortes acabassem.
Meer: E quando você acha que essa violência acabará?
Débora Maria da Silva: A violência acabará quando não houver policia militar. Num estado democrático de direito, jamais poderíamos achar natural que agentes públicos matem nossos filhos, que eles usem suas cadeiras de mando para matar, para garantir seu poder em cima de corpos negros e pobres. Dizer que a violência diminuiu é o imaginário de qualquer pessoa leiga, ela não diminuiu, não diminuirá enquanto existir essa política militarizada.
Meer: Qual é a importância de manifestações populares como o Cordão da Mentira?
Débora Maria da Silva: É muito importante qualquer manifestação popular, é a essência da democracia, como o Cordão da Mentira e atos contra as violações dos nossos direitos que estão no arquivo quinto da Constituinte, que é violado pelos nossos governantes e que não é colocado em prática. O Estado continua sendo um estado punitivo. As “canetas dos doutores” matam mais que um fuzil na mão de um policial quando pedem arquivamentos de crimes contra a vida, que não são investigados. Então é necessário que o povo ganhe as ruas, a força do povo está na rua.
O Cordão vem para escrachar com a mentira de uma ditadura que acabou e de um estado de direito que ninguém tem, que é violado pelos órgãos estatais. Enquanto houver racismo, enquanto não combatermos o racismo, não haverá democracia. Ela só será verdadeira quando ela for de raça, de classe e de gênero, ai acaba a violência. A gente luta, almeja parir um novo Brasil, uma nova sociedade junto com o Cordão da Mentira.
O cortejo partirá do Centro Universitário Maria Antônia (Rua Maria Antônia 294 – próximo ao metrô Mackenzie), espaço histórico de resistência à ditadura, e seguirá até o antigo DOPS, hoje Memorial da Resistência, no centro de São Paulo. A concentração começará às 17h com músicas e homenagens, seguida do cortejo, que seguirá até o antigo DOPS, cantando canções compostas para o Cordão de autoria de Douglas Germano, Renato Martins, Selito SD e Everaldo as F. Silva.