Uma lata existe para conter algo,/ Mas quando o poeta diz lata/ Pode estar querendo dizer o incontível.
(Gilberto Gil)
A obra Dicionário de artistas – breves notas”, do escritor português Gonçalo M. Tavares1 estende-se por entre metáforas. Ao contrário do que o título sugere, seu dicionário particular rompe com o que se espera de um verbete comum. Ele cava o enfraquecimento do sentido estabilizado para um termo que abre brechas, instaurando um jogo entre palavras, imagens, nomes próprios e suas definições. A partir de mais de sessenta fotografias e montagens imagéticas da conta *Os especialistas na rede social Instagram o autor produz importações, rupturas e deslocamentos e substituições preciosas fazendo valer a máxima pechetiana de que “a metáfora também merece que se lute por ela”.
Em Luz e diabo, por exemplo, são as palavras que estabelecem o equívoco de uma aliança inesperada. Ainda mais se tomarmos a boca aberta nas sombras da imagem, da qual se expande um triangulo de luz a deixar as nervuras do cimento à mostra. Isso promove uma substituição ligada ao nome de Nan Goldin, fotógrafa americana dedicada ao trabalho artístico com corpos LGBTQI+ em situações de intimidade, aqui condensada no (que seria o) título do verbete. A voz do autor soma-se a essa renda de pespontos interrompidos marcados por reviramentos que fazem o sentido tomar uma direção imprevista, sinalizando que “em determinadas certas fotografias até as flores parecem ter ossos e padecer de doenças”, “um excesso triste na falta”.
Primado da metáfora: “reconhecer que não há ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas, ‘uma palavra por outra’ é a definição de metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso”2. Assim, o próprio da palavra é a plasticidade de se deixar equivocar, explodir e ser trocada por outra, em um processo cuja literalidade pode ser estilhaçada. No caso do livro em questão, verbete, nome do artista, fotografia e definição substituem-se em cadeia, produzindo uma mutação de palavras em série.
Franz West, escultor austríaco cuja obra de grandes dimensões e objetos de formatos pouco lapidados em cujas reentrâncias o visitante era convocado a entrar, aparece como nome a respeito do qual será estruturado o verbete. A fotografia tem, ao lado do sapato humano, um objeto em formato parecido com algumas obras do escultor; no entanto, a dimensão pequena e o fato de estar sobre a areia produz um desacordo de saída. “O mundo é impróprio para ser calçado, não serve nos pés de ninguém” é a sentença que revira a imagem e muda a direção do trabalho ao qual se faz referência, substituindo-o por uma ordem de impedimento. O mundo é um elemento não “pisável”, essa palavra permuta o que o calçado humano pode convocar de efeito sobre conforto durante a caminhada. Se estamos diante de uma superfície que não garante solidez, de nada valem sapatos, objetos, areia e arte. “Como saber?” O certo é que “ficamos com pouca coisa”.
A fotografia, provavelmente de uma loja ou brechó de roupas, marca um diálogo com a obra de Christian Boltanski, artista francês multifacetado, que trabalhou com arte visual, escultura, fotografia e, instalação, tensionando a relação entre a memória, identidade, perda e morte. Por trabalhar com roupas, objetos e móveis muitas vezes usados, o artista dedicou-se a problematizar início e fim da vida humana, as recordações e os esquecimentos dela, o vazio da morte dentre outros temas. Aqui as roupas estão à mostra de outro modo, substituindo as imagens tão próprias do trabalho de Boltanski; velhas ou novas, elas encontram-se expostas ao vento, ao sol, aos olhos da rua e do homem que se coloca diante delas, prontas para serem objeto de desejo, venda, compra e uso.
O verbete Tristeza tanto desliza quanto substitui o impacto de pilhas e montanhas de roupas usadas por essa outra forma de apresentá-las, ou seja, o efeito de corpos mortos e ausentes que regularizam o efeito de horror nas obras do artista seguem a direção de mostrá-las ainda vivas e prenhas de movimento. Assim, “a tristeza é efeito de um outro modo de os pensamentos se movimentarem (...) Existir é estar preparado para esquecer.”. É isso: “a metáfora aparece fundamentalmente como uma perturbação que pode tomar a forma do lapso, do ato falho, do efeito poético, do Witz ou do enigma.”, indica Pêcheux3. Tais permutas enredam-se no jogo das palavras, tão bom escutá-las.
“(...) como se o eterno também pudesse ganhar gordura”, é sobre Lucian Freud, o grande ourives do volume na figura humana. Artista comprometido com a pintura de corpos enormes, gordos e nus com detalhes minuciosos à mostra, fez um inventário precioso de marcas, veias, cicatrizes, sinais que a pele pode conservar. “Admirados e ofendidos” traz uma fotografia de manequins muito magros e um corpo igualmente esbelto, formas estas que alteram o que circula e o que se sabe sobre a obra do neto do inventor da psicanálise. “Eis a metáfora como importação, clivagem, construção e deslocamento da referência discursiva por meio da relação entre regiões discursivas que falam das mesmas “coisas”, mas não dizem as mesmas coisas sobre elas.”4
Metaforicamente tecido, esse livro desconstrói o dicionário, tornando-o outra estrutura, nunca vista anteriormente pela combinação de elementos potentes: a voz do autor, as fotos da rede social, o nome próprio dos artistas citados e tudo o que isso produz como efeito de memória, e o título do verbete. Um encontro híbrido de palavras e imagens que tiram a obra do lugar comumente legitimado como dicionário. Na apresentação de Reginaldo Pujol Filho, há inclusive a seguinte interrogação: “Dicionário pode ser museu, museu pode ser dicionário? (...) Um livro que pede para o pensamento parar”. Para além da estrutura formal, parar para escutar o efeito metafórico5 que Tavares produz com maestria ao cortar e costurar as palavras com tanta consequência.
Notas
1 Tavares, G. M. Dicionário de artistas – breves notas. Porto Alegre, Dublinesse, 2023.
2 Pêcheux, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
3 Pêcheux, M. Metáfora e interdiscurso. In: Orlandi, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Campinas, Pontes, 2011.
4 Cattelan, J. C. Interdiscurso e memória: a metáfora e a metonímia em Pêcheux/Herbert. Alfa, São Paulo, v. 66, 2022.
5 Gadet, F.; Pêcheux, M. A língua inatingível. Campinas, Pontes, 2004.