Minha tia, possivelmente a pessoa mais meticulosa que conheço, tem uma teoria muito interessante e prática que eu chamo de “teoria dos favores”. Ela frequentemente diz “Não gosto de aceitar favor para não ficar devendo favor a ninguém”. Essa filosofia é aplicada rigorosamente em sua vida. Não gosta de pedir ajuda para carregar compras, não solicita assistência para cuidar da minha avó e recusa qualquer ajuda na preparação da ceia de Natal quando ela se dispõe a prepara-la. Em resumo, minha tia rejeita favores de qualquer tipo.

Quando comecei a faculdade de Ciências Sociais, logo me deparei com um dos autores clássicos da antropologia estrutural francesa, Marcel Mauss. Para minha surpresa, percebi que minha tia, a partir de suas experiências do cotidiano — de forma menos acadêmica, mas não menos perspicaz — havia elaborado uma reflexão semelhante à desenvolvida por Marcel Mauss1. Segundo minha tia, quando alguém te faz um favor, você se sente compelido a retribuir. E este é o mesmo princípio elaborado por Mauss.

A teoria da dádiva, sistematizada por Marcel Mauss, é um conceito importante para antropologia e busca compreender como sociedades tradicionais organizam suas trocas econômicas e sociais. Mauss identifica três obrigações fundamentais: dar, receber e retribuir.

O ato de dar inicia uma relação social, criando um vínculo entre doador e receptor. Receber um presente ou favor implica na aceitação desse vínculo, que, por sua vez, gera a obrigação de retribuir. Essa retribuição não é meramente um ato de cortesia; é uma obrigação social que requer que o presente ou favor seja devolvido em valor equivalente, perpetuando um ciclo de trocas.

Um exemplo cotidiano pode ilustrar essa teoria: quem nunca se sentiu desconfortável ao receber um presente de amigo oculto muito mais barato ou muito mais caro do que o que deu? Esse sentimento de desequilíbrio reflete a tensão na obrigação de retribuir de forma justa, um princípio central na teoria de Mauss.

Na prática, a “teoria dos favores” da minha tia funciona da mesma maneira. Um favor é solicitado ou oferecido, aceito e, em algum momento, deve ser retribuído. Mauss sustenta que a troca de presentes, ou dádivas, é um mecanismo complexo que mantém laços sociais, alianças e hierarquias. Nessas trocas, expressam-se poder, solidariedade, respeito e hierarquia. Em algumas culturas, inclusive, acredita-se que os objetos trocados contêm um “espírito” que vincula doador e receptor, obrigando a manutenção dessa troca para restauração de um equilíbrio.

Tanto na teoria de Mauss quanto na da minha tia, a retribuição não é opcional; é uma obrigação moral. “Fica feio” receber um presente de aniversário e não dar algo de volta no aniversário da mesma pessoa. Em situações de menor formalidade, essa dinâmica também se aplica: já ouvi de muitos amigos princípio semelhante às felicitações de aniversário: “fulana não me deu feliz aniversário, também não darei a ela”. Isso demonstra como um vínculo social pode ser enfraquecido pela falha na reciprocidade.

Da mesma forma, os favores funcionam sob essa mesma lógica. A expectativa de retribuição, frequentemente implícita, se torna explícita em expressões como “Agora você me deve uma” ou “Estou te devendo”. A falta de retribuição é vista como ingratidão e quebra de um acordo social tácito.

O aspecto mais interessante e verdadeiro da teoria da minha tia é que não se trata apenas de não pedir favores, mas de não aceitá-los, nem mesmo os oferecidos gratuitamente. Para ela, qualquer favor, especialmente os oferecidos sem solicitação, exige retribuição. E é por isso que ela os rejeita categoricamente: “Não, obrigada, não precisa”. De acordo com Marcel Mauss, essas obrigações sociais de troca não apenas estruturam, mas também perpetuam a coesão e a ordem social, refletindo a sabedoria prática e quase intuitiva que minha tia aplica em seu dia a dia.

Mais do que simplesmente evitar a retribuição — algo que poderia ser interpretado como uma recusa em manter vínculos sociais —, o que realmente importa para minha tia, e que acabei adotando também, é a ideia de não criar dependências e expectativas. Aceitar um favor, para ela, significa abrir uma lacuna de pendência, algo que a deixa em dívida com alguém. E essa dívida, mesmo que implícita, pode ser cobrada a qualquer momento, gerando uma sensação de constante incerteza e obrigação. Para minha tia, evitar essa situação é uma maneira de preservar sua autonomia e evitar o desconforto que vem com a percepção de estar devendo algo a alguém.

Notas

1 Mauss, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. São Paulo: Cosac Naify, 2013.