No pequeno meio rural de onde venho, não é raro cruzarmo-nos com personagens caricatas. E, num dia chuvoso como hoje, menos raro ainda é relembrá-las com um sufocante saudosismo, não fossem eles um componente imprescindível através do qual era construída a narrativa do meu mundo, na infância. Claro está que os que relembro nestes dias cinzentos em que a gente tropeça na calçada gasta, são exatamente os que pareciam ir tropeçando pela vida como se esta de uma outra calçada, ainda mais escorregadia, se tratasse.

Nunca dediquei muito tempo da minha existência a analisar felicidades. Sempre as vi como estados de espírito demasiado rasos, desprovidos de grandes variações relevantes, sem as suas idiossincrasias, pobres em nuances. Toda a gente feliz parece igual. Mas a desgraça e a tristeza têm sempre um amargo diferente de pessoa para pessoa. Em suma, na minha cabeça, é como se desfilasse um panteão de gente da terrinha:

"Já pensaram em como até esta garrafa pode ser considerada um objeto artístico?"

Nunca falha este, o rural anarquista solitário, que se afundava em qualquer copo e que, de semana em semana, lá era expulso de algum bar, ora à força de palavras, ora à chapada;

“Depois era mais um para apontar, s’axavôr”

O senhor que tinha um dos lados do corpo paralisado e que, sem falhar um dia, passava no tasco da esquina e pedia um tinto para “apontar”;

“Era para estarem em casa a estudar!”

E, finalmente, uma professora de português risonha cuja imensa animação triste parecia fazê-la esquecer sempre os assuntos sérios. (Vá-se lá saber se aquilo não era algum espécime de autopreservação, aprendida e desenvolvida ao longo de uma dura vida.)

É sobre esta última recordação de pessoa que vos venho falar hoje. Ainda antes de conhecer essa senhora, todos os professores me encaminhavam subtilmente para o campo das ciências, porque “não queres ir para o desemprego, não é?” …

Parecia haver um qualquer pacto silencioso. Era como se escolher algo que não envolvesse as ditas ciências fosse o mesmo que assinar um atestado de perdedor. E se há coisa que um miúdo de aldeia jamais quer admitir é a derrota. Saberão isto tão bem, ou melhor que eu, se conhecerem, minimamente, algum meio rural.

O grupo de docentes lá me ia encarrilando com carícias na cabeça — “tu és inteligente, é só ires para científicos que arranjas emprego onde quiseres”— com todas as suas boas intenções. As hipóteses, na verdade, também não eram muitas. Era isso, ou cursos profissionais que, infelizmente, ninguém, nem mesmo os professores, levavam a sério. (Acredito que isto tenha melhorado substancialmente na última década).

Na correria, meio trôpego e desorientado, lá ia eu avançando naquele hipódromo. Galopando, galgando números, fórmulas, investindo em calculadoras e desvairando os olhos com gráficos. Cada vez mais frustrado, sem paciência para páginas quadriculadas, lá me escapulia de tudo isso alternando ora entre uns copos com amigos, ora entre uns livros de biblioteca.

Quando ler não é uma obrigação, é uma espécie de paraíso roubado à força.

Acabei por conseguir chegar à reta final do ensino secundário, ainda em científicos, mantendo, apesar de tudo, um resquício de sanidade. Mantive-me no curso, porque os anos de adolescência são demasiado extensos para ter sequer ponderado voltar atrás, mesmo que isso fosse a opção mais sensata. (Também, sejamos francos, existe algum adolescente que tenha como característica distinta uma sagaz sensatez?)

De qualquer das formas... Retomemos a nossa personagem principal. Ela lecionou-me a disciplina durante todos os penosos anos de secundário. Fomos estudando várias obras e autores. Apesar de ela não ter um pulso firme o suficiente para garotos como nós, tinha amor. Isso é inegável. E deve ser por isso que ainda me lembro dela.

Há, particularmente, duas situações que recordo com afeto.

A primeira, que foi em tempo de exames nacionais, foi um caricato momento em que, juntamente com um grupo de amigos, me cruzei com a dita professora.

— Mas o que é que vocês andam aqui a fazer, meninos??? — poucas vezes chegou tão perto de parecer chateada, como fez nesse momento.
— Viemos ao café. —Constatou um colega, como se comentasse casualmente o tempo.
— Ao café?? — arqueou as sobrancelhas finas, tentou fazer da pouca altura que tinha, a suficiente para se mostrar chateada e resmungou de novo — Ao café? Vocês não estão a ter aulas para poderem estar em casa a estudar para o exame!

Com um tom melífluo, em desafio amigável, resmunguei-lhe de volta:

— Prof, o Pessoa também passava a vida em bares e olhe lá…

Ela diminuiu uns centímetros automaticamente, como um peixe-balão que tivesse ficado a salvo e abriu um sorriso incauto, puro e acolhedor, mas sempre semi-triste.

— Ahh, isso é verdade… — os olhos viraram-se para as nuvens com um ar alheado de sonho, enquanto pausou o discurso. — e o que ele conseguiu fazer mesmo assim, não é, meninos? — Rematou.

As notas do exame na nossa escola, nesse mesmo ano, foram o epítome da desgraça. Nem uma pobre alma superou o 14.

Tive, no fundo da garganta, o agridoce travo de receber pessoalmente os parabéns da diretora da escola pela nota.

Travo amargo esse que, vos juro, tive que me esforçar para que não se desfizesse em riso jocoso perante a diretora, tendo em conta a desgraça de exame que tinha sido. Não ri, porque, afinal de contas, fui o melhor da escola nesse ano. Ser o melhor dos piores sempre deve querer dizer alguma coisa, não? A professora concordaria comigo, de certeza.

E isso leva-me à segunda recordação: Um dia, entre variadas apresentações no secundário, eu levei o meu “Bichos” do Torga, escritor português, debaixo do braço e uma interpretação ousada a palitar os dentes. Porque, no fundo, tudo isto é uma alegoria bíblica, digamos. E é interessante o Torga fechar o livro com este conto, onde, depois de fazer dos humanos animais e dos animais humanos, faz dos corvos deuses. Ia voltar-me para me sentar.

— Leandro, tu já sabes o que vais fazer no final do ano?
— Não sei, ainda ando a ver cursos.
— Tens... de ir para Letras. Devias mesmo.

Passado uns anos, no mestrado de Literatura (que, mais tarde, procrastinei até desistir), fui convidado para dar uma palestra sobre o Torga, porque duas docentes tinham trocado algumas impressões sobre a minha interpretação do dito conto.

Rejeitei.

Acho que nunca quis ser o melhor, nem sequer dos piores. Sempre escolhi ser eu, nem que seja um “só eu”. Mas o “eu” tem que estar na frase.

Uma pessoa vai melhorando com o tempo. E, afinal, mesmo que esse “melhorando” soe a “piorar” em ouvidos alheios, isso pouco vai importar.

Certa vez, desabafou Robert Frost, poeta americano, para um rascunho qualquer: “Dois caminhos separavam-se num bosque amarelo, e eu.../ Eu escolhi o menos percorrido/ E isso fez toda a diferença.”.

Há uns valentes meses ouvi dizer que a professora que me aconselhou a ir para Letras estava em plena deterioração das suas faculdades psicológicas… Sei que corro o risco de, infelizmente, ser tarde demais, mas:

esteja onde estiver a sua mente,
queria só mesmo dizer-lhe que acabei por escolher ser eu,
mesmo que isso, em alguns dias, não seja sensato,
mesmo que soe a falhanço para alguns,
mesmo que às vezes seja complexo e difícil de compreender para os outros e para mim.

Esteja onde estiver,
Queria só mesmo dizer-lhe isso.
Dois caminhos separavam-se num bosque
E eu acabei por escolher ser eu e vim mesmo para letras, professora.

E está tudo certo.

Do seu ex, mas não assim tão ex-aluno,