O fazer clínico da psicologia é político. Para afirmar isso, valem os apontamentos de Dutra1 (2004), que nos apresenta a etimologia da palavra “clínica” como o significado de “à beira do leito”, deixando nítida a influência do modelo biomédico na psicologia clínica como área de atuação e conhecimento da psicologia.
Essa influência hegemônica resultou, historicamente, no Brasil, em uma prática individualizante no âmbito clínico da psicologia, atendo-se ao corpo do indivíduo que procura o serviço e a um limitado número de variáveis causais, desconsiderando que determinantes sociais da saúde são essenciais para entender a dinamicidade do processo de saúde-doença (Traverso-Yépez2).
A individualização do sofrimento expressa nitidamente o neoliberalismo vigente em nossa sociedade. Dardot e Laval3 em A nova razão do mundo observam que o indivíduo imerso na lógica neoliberal vê-se como especialista em si mesmo, empregador de si mesmo e inventor de si mesmo. A racionalidade neoliberal impede o eu de agir sobre si mesmo para fortalecer-se e assim, sobreviver na competição.
Logo, numa sociedade de pessoas empreendedoras, consideradas livres e responsáveis por seus atos, as situações de desamparo, desemprego e insucesso são vistas como fracasso pessoal, ou seja, quem fracassa, fracassa por não ter sabido gerenciar adequadamente sua vida, por não ter investido suficientemente em si mesmo, e não como resultado das transformações coletivas e sociais impostas pela lógica neoliberal que espalha a desproteção social e debilita os laços de solidariedade, conforme Caponi e Daré4.
De acordo com Marx5, o indivíduo é um ser social, e se as pessoas se desenvolvem socialmente, os processos de saúde e doença por eles vividos são também determinados socialmente; assim, as formas de adoecimento estão intrinsecamente relacionadas ao modo de produção da vida social.
A saúde-doença envolve os processos biológicos e psicológicos e neles se expressa, mas há uma subordinação destes processos ao social, que os condiciona a se expressar de determinadas formas, pois tal processo se desenvolve simultaneamente no âmbito individual (biopsíquico) e no âmbito social (Almeida6). No âmbito social, porque a forma como os seres humanos produzem suas vidas e organizam suas relações cria condições-limite para determinadas formas de saúde-doença (Almeida citado por Donagelo6).
A partir disso, o(a) psicólogo(a) não deve estar alheio(a) a essa discussão, visto que a psicologia é uma ciência e não há nenhuma neutralidade nela. E se não há neutralidade nela, não há neutralidade na prática profissional. É certo que ambientando-se na clínica, não há como desconsiderar a existência de um fazer emergente e que contrapõe-se ao socialmente estabelecido (capitalisticamente falando). Este fazer é aquele que elucida o interesse e preocupação com o contexto histórico-cultural, que implica significativas alterações na concepção de sujeito e, consequentemente, novas interpretações das teorias psicoterápicas.
Para Dutra1, esta concepção de “clínica” para Psicologia passa a buscar uma articulação mais concreta entre o fazer clínico e o social, podendo-se dizer que o novo fazer clínico inclui uma análise do contexto social em que o indivíduo está inserido, fazendo com que assim o referencial teórico deixe de ocupar o espaço de principal norteador da prática, passando a ser ocupado pelo compromisso ético do(a) psicólogo(a).
É necessário romper com a lógica individualizante do neoliberalismo, não apenas no fazer clínico. Faz-se necessário questionar se o fazer clínico, em psicoterapia, analisa e considera criticamente a realidade política, econômica, social e cultural de quem procura o serviço.
Questionar se o nosso fazer clínico contribui mais para a eliminação ou manutenção de discriminações, violências, crueldades e opressões para com os indivíduos essencialmente sociais, transversalizados por gênero, raça, etnia, classe, deficiência, orientação sexual, aspectos geracionais, entre outros. Questionar se percebemos o que há para além do que é aparente, indo de encontro ao concreto.
Notas
1 Dutra, E. Considerações sobre as significações da psicologia clínica na contemporaneidade. Estud. psicol., Natal, v. 9, n. 2, 2004.
2 Traverso-Yépez, M. A Psicologia Social e o trabalho em saúde. Natal: EDUFRN, 2008.
3 Dardot, P.; Laval, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
4 Caponi, S.; Daré, P. K. Neoliberalismo e Sofrimento Psíquico: A Psiquiatrização dos Padecimentos no Âmbito Escolar. Em Mediações, Londrina, v. 25, n. 2, p. 302-320, mai-ago. 2020.
5 Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
6 Almeida, M. R. A formação social dos transtornos do humor. 2018. 415 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Botucatu, 2018.