A imagem do senso comum sobre os valores morais ocidentais costuma acreditar que durante a maior parte da história o mesmo conjunto de valores herdados da cultura cristã foi a norma apenas recentemente sendo abandonados por uma cultura mais liberal. Essa mudança costuma ser vista por alguns como uma decadência e por outros como uma emancipação de regras desnecessárias. Ainda que não totalmente incorreta, a moralidade mudou muito ao longo de dois milênios de civilização cristã.
No mundo antigo, os romanos possuíam uma ética muito diferente da moderna. Ainda que não fossem tão libertinos quanto a imaginação moderna costuma pintá-los, os pagãos não possuíam várias das restrições cristãs. Orgias eram apreciadas, mas eram também condenas pelos moralistas públicos, não muito diferente do que ocorre nos tempos moderno, não era considerado errado um senhor desfrutar de sexo com suas escravas.
Os pagãos ainda que não fossem desprovidos de restrições sexuais costumavam ver o sexo com uma luz menos negativa do que seus sucessores monoteístas. Os romanos condenavam o celibato como algo negativo, diferente dos cristãos que o estimulavam. Alguns cultos pagãos praticavam sexo como parte dos rituais religiosos a determinados deuses. Alguns templos chegavam a organizar prostituição remunerada como parte de seus ritos sagrados a deuses ligados a fertilidade. Frequentar bordéis não era considerado desonrosos para os homens de forma alguma, mas trabalhar em um era, tanto para homens quanto para mulheres.
A homossexualidade não era condenada (pelo menos não da mesma forma que os cristãos), um homem poderia ter sexo com outro de uma posição social inferior a dele, desde que desempenhasse o papel de ativo, ser passivo seria considerado vergonhoso e afeminado. Praticar o ato sexual com mulheres, escravos, adolescentes ou pessoas de baixa reputação como prostitutas ou artistas não seria considerado errado ou pouco viril para um cidadão romano.
Adultério, especialmente o feminino, era algo extremamente sério por confundir a paternidade de uma criança. De fato, na antiguidade, a mulher que não fosse confiável para ser parceira de um homem era tão malvista que vítimas de estupro sofriam rejeição social por terem perdido seu valor para casamento. Algumas culturas como a judaica possuíam leis punindo mulheres que não gritassem se alguém tentasse estuprá-las, e até podiam recomendar o casamento da mulher com o estuprador como forma de “solucionar” o problema para os homens das famílias.
A cultura cristã representou em vários aspectos um endurecimento moral, a prática homoerótica sempre foi condenada por todas as religiões monoteístas, e claro o estilo de vida mais permissivo dos pagãos também. A igreja ditava quais posições sexuais o casal poderia ter durante o ato e que o sexo fosse para a reprodução apenas. De fato, os primeiros padres incentivavam que os fiéis mantivessem o celibato mesmo que fossem leigos. Ainda assim, a idade média não foi uma época tão rígida quanto o imaginário popular costuma representar.
Os homens medievais, mesmo sabendo dos desejos da igreja, sabiam que poderiam desfrutar de sexo antes do casamento apenas respeitando certos limites. As mulheres medievais eram divididas em vulgares e respeitáveis, com as primeiras sendo livres para sexo mesmo sem nenhum compromisso real, apenas as mulheres de boas famílias teriam que ser respeitadas e evitar o contato até a noite de núpcias.
Apesar dos esforços da Igreja, o sexo antes do casamento era relativamente bem comum e boa parte da sociedade considerava-o normal, só sendo advertido contra pelos padres durante as confissões. Mesmo que as punições fossem mais severas que hoje, o adultério foi frequente, a incidência de traição era tão alta que nem era considerada razão lícita para anular um casamento (divórcio só seria aceitável depois da era moderna).
A prostituição foi uma atividade corriqueira e aceita pela Igreja por quase todo o milênio medieval. A própria igreja criava licenças para bordéis, cobrando taxas e em alguns casos, os próprios Bispos poderiam ser os chefes de estabelecimentos. O motivo pelo qual a Igreja permitia um ato que obviamente era pecado seria porque sem a opção da prostituição, os homens recorreriam a práticas piores como adultério e violência. Então seria melhor permitir a prostituição.
A igreja católica considerava todo o ato sexual como errado e pecaminoso, a prática dentro do casamento com intenção de constituir família seria a forma aceitável pois restringia os desejos do casal, mas como todo o sexo era nefasto, a prostituição não seria um mal tão ruim, e obviamente menos problemático do que as opções.
Ainda que a homossexualidade fosse proibida, durante a primeira metade da época feudal não era considerada pior que outros pecados de luxuria e a punição não era muito rígida, exigindo apenas orações e boas obras para redimir. Apenas depois do ano 1000, os clérigos se tornaram mais intolerantes com a prática e castigos severos foram aplicados, muitas vezes incluindo torturas e até execuções.
Mesmo com a homossexualidade sendo tão malvista, a amizade masculina era estimulada e a fronteira entre as duas podia ser opaca. No período existiam “contratos de amizade” em que dois homens se comprometiam a serem melhores amigos para sempre, a partir desse ponto não seria estranho se morassem juntos na mesma casa. Os historiadores ainda debatem se isso poderia ter sido usado por homossexuais para manter relacionamentos de modo disfarçado.
O aborto não era totalmente malvisto na época, a própria igreja não condenaria formalmente a prática até o século 19 e vários padres e santos achavam que não seria pecado, alguns até achavam aceitável abortar até com o feto com 6 meses de gestação, algo que ainda não é bem aceito mesmo entre defensores do tema atualmente.
No mundo muçulmano, a postura era ainda menos rígida. Mesmo que a homossexualidade também fosse considerada crime, os muçulmanos costumavam ser tolerantes com as fantasias sexuais não realizadas. O gênero da poesia homoerótica era muito difundido na literatura islâmica, sendo mais popular do que seu equivalente heterossexual. Algumas cortes reais islâmicas, mesmo com as restrições da religião, praticavam a homossexualidade nas formas romanas, alguns nobres chegaram mesmo a formar haréns masculinos.
O islã tende a ser mais permissivo com o sexo que o cristianismo, porém mais severo com o consumo de bebidas. Mesmo os textos que relatam o paraíso costumam ter referências a prática sexual. Os primeiros reinos islâmicos possuíam a figura da Qiyan, escravas sexuais dedicadas a entreter os homens, similares as Gueixas Japonesas. E no império Otomano ainda que a prostituição fosse crime era uma prática comum.
Como se esperava que as mulheres se mantivessem castas até o casamento, grande parte do mundo muçulmano empregava meninos para atividades eróticas. Vários reinos islâmicos recrutavam meninos de baixa renda para serem treinados como dançarinos e prestarem favores sexuais aos homens, esses adolescentes deveriam se vestir de modo considerado feminino e deixar a aparência o mais delicada possível para remeter as mulheres para trabalhar em estabelecimentos de entretenimento. Alguns países ainda mantem tais práticas mesmo sendo condenadas. O argumento empregado pelos defensores da prática era que o islã condenaria o sexo entre homens, mas não entre um homem e um adolescente.
A chegada da renascença trouxe um novo endurecimento em boa parte dos padrões morais. Restrições a prostituição se tornaram mais frequentes, a chegada da Sífilis fez com que muitos ficassem mais preocupados com as regras sexuais. Em relações a direitos, houve uma diminuição da liberdade feminina, no casamento, homens poderiam livremente agredir suas esposas como forma de educá-las desde que não as matassem, em caso de adultério mesmo espancá-la até a morte não seria ilícito em grande parte da Europa.
Ainda assim, em outros aspectos, a cultura poderia ser bem permissiva. Um dos elementos mais livres da cultura renascentistas era o teatro, as peças da época eram surpreendentemente violentas, muitas vezes usando tripas de animais para representar cenas de violência. Shakespeare foi um dos que exploraram o assunto, fazendo peças para o grande público, suas histórias muitas vezes focavam em vilões perversos e cheias de assassinatos ao invés de em heróis nobres que teriam sido mais apreciados pela nobreza moralistas, como na peça “Ricardo III”.
Espetáculos gráficos que envolviam brigas de animais e execuções públicas de condenados eram grandes atrações entre a população que se reunia para ver os shows de violência como colocar fogo em gatos vivos. Mesmo com as restrições sexuais, encontros causais eram comuns, ter filhos fora do matrimonio era tão comum que alguns chamavam a renascença de “A era dos bastardos”.
A aparição da Reforma protestante e sua rival a Contrarreforma católica trouxe nova onda de preocupação com a ética cristã. Calvino ao tomar conta da cidade de Genebra lutou contra a facção dos libertinos para impor um código moral rigidíssimo. Em seu domínio teocrático, o teólogo criou um polícia da moralidade que andava pela cidade disfarçada de cidadãos comuns procurando pessoas pecando.
Ao contrário dos católicos medievais, os protestantes tinham visão bem idealistas sobre o casamento, vendo como a realização do amor cristão e o ato sexual como a consumação dele. Por isso, os protestantes não viam pecado no sexo dentro do matrimonio, mas demonizavam muito mais o ato sexual fora dele, especialmente a prostituição.
Na Inglaterra, Oliver Cromwell ordenou o fechamento de todos os teatros do país como forma de lutar contra a imoralidade na arte, praticamente todas as diversões se tornaram proibidas, dança, música, bebida e jogos, havia espiões para verificar como as pessoas usavam o domingo ao invés de ir à Igreja. Já na França, o fanático e ambicioso rei católico Luís XIV impôs restrições ainda mais rígidas a prostituição, curiosamente distante das recomendações que a própria igreja tinha apoiado alguns séculos antes.
O fim das guerras religiosas abriu a mente dos europeus para o prazer carnal. O fanatismo não fazia bem e a liberdade de consciência era importante para o homem. Tanto na França quanto na Inglaterra, reis hedonistas assumiram o trono e relaxaram as regras morais. O teatro inglês ficou lotado de peças de caráter “imoral” debochando das regras tradicionais. O poeta inglês John Wilmot atacou o “autoritarismo espiritual” dos puritanos.
As regras contra a prostituição foram relaxadas. Além da prostituição, estabelecimentos para festas de sexo (o que hoje seria considerado casas de swing) eram comuns para os ricos, e o abuso de bebidas era um problema endêmico, como o de drogas nos tempos modernos. O século 18 foi rico na chamada literatura libertina, feita por críticos da igreja, atacando as instituições e a moralidade cristão. Nessa época, foi publicado, ainda postumamente, o primeiro livro defendendo o ateísmo, ironicamente escrito por um religioso, “O testamento do Padre Meslier”. Ao mesmo tempo, o Marquês de Sade, provavelmente o autor mais amoral da história, defendeu o fim das regras e permissividade absoluta.
A chegada do período vitoriano no século 19, foi uma ruptura com o espírito permissivo anterior. A sociedade burguesa projetava um mundo de moralidade mais severa, inspirada por um ideal romântico de mundo. O crescente movimento evangélico estimulou o desenvolvimento de regras rígidas sobre etiqueta e sexo. Mesmo exibir os cotovelos ou os ombros desnudos era considerado indecente. O período foi tão exigente que mesmo clássicos da literatura tiveram que ser reescritos para se curvarem aos novos padrões morais da sociedade. Cientistas denunciavam a masturbação como causadora de problemas de saúde e mental para desincentivar os jovens à prática.
Fora da Europa, a influência nos padrões morais foi sentida. O mundo islâmico em decadência começou a sofrer a pressão dos chamados revivalistas islâmicos, fanáticos que acreditavam ser necessários expurgar o pecado de dentro da comunidade muçulmana, após séculos de uma postura ambígua sobre o tema, o islã se tornou completamente intolerante a qualquer forma de desejo homossexual, o padrão rígido atualmente associado aos muçulmanos conservadores estava se estabelecendo. Mesmo em culturas que antes não possuíam regras contra a homossexualidade, como a China e o Japão, começaram a condenar a prática por influência ocidental.
Os padrões morais vitorianos acompanharam uma luta intensa contra os percebidos males da sociedade: como o consumo de bebidas, visto como arruinando vidas, e a prostituição. Escritores como Samuel Smiles, o principal autor do nascente gênero da autoajuda pregava uma vida de dedicação e trabalho duro livre dos vícios.
Ainda assim o sucesso da cruzada moral era limitado, o número de prostitutas era elevado pois muitas mulheres de classe baixa tinham que recorrer ao trabalho para sustento, consumo de ópio era frequente, o próprio estado britânico traficava a droga para a Ásia. Os artistas realistas/naturalistas desafiavam abertamente os códigos morais, expondo a hipocrisia da burguesia. No final do século, o teatro Grand Guignol exibiu peças sanguinolentas para as classes pobres.
O começo do século 20, com vários movimentos de reforma social continuou a tendência da época vitoriana, vários moralistas defendiam a censura da nascente nova arte do cinema e melhora da ética pública. Talvez o projeto mais famoso, ainda que pelo fracasso, realizado no período foi a proibição de bebidas no Estados Unidos, que acabou sendo ignorado pelo povo e pelas autoridades.
A passagem da primeira guerra mudou tudo, cansada da luta, a população queria se divertir, o período entre guerras, chamado de “A era do Jazz” trouxe nova onda de permissividade à sociedade. Mulheres, livres pela primeira vez em séculos, agora usavam roupas provocantes, fumavam, bebiam, festejavam madrugada adentro e faziam sexo antes do casamento. Relacionamentos homossexuais se tornaram aceitos pela primeira vez desde os tempos do império romano. Bares para homossexuais prosperaram nas grandes cidades, um deles direcionado a lésbicas ficou famoso pelo letreiro na entrada “Homens são permitidos, mas não são bem-vindos”. Para a tristeza da geração, isso não iria durar.
A crise de 1929 encerrou o hedonismo, visto como uma das causas da decadência. Os três regimes recém-inaugurados, de Stalin, Hitler e em menor escala Roosevelt, pregaram moral rígida. Nazistas e comunistas perseguiram homossexuais e subordinam as mulheres aos maridos, os americanos do New Deal por sua vez passaram leis limitando a liberdade das minorias sexuais, incentivaram as esposas a largarem empregos para cuidar do lar e ajudaram a estabelecer censuras bem detalhadas no cinema. Filmes foram obrigados a ensinar o público a seguir as regras e ser um bom cidadão.
A chegada da guerra fria apenas piorou essa severa moralidade, com o medo de traição para o inimigo comunista, o “pânico lilás” contra homossexuais e a quase obrigatoriedade de frequentar a igreja para não ser confundido com um traidor, foram a tônica do período. No meio da paranoia anticomunista, mesmo as ofensas mais insignificantes podiam arruinar vidas, Carmem Miranda foi alvo de conservadores apenas por ter ido a um evento de Hollywood sem calcinha. No mundo artístico, quadrinhos de terror, até então bem populares foram eliminados do mercado pelo moralismo, a censura presente no cinema foi estendida aos nascentes mercados da televisão e dos quadrinhos.
A segunda metade do século acabou com essa rigidez moral, jovens da contracultura agora desafiavam a ética cristã exigindo uma nova moralidade. O relaxamento moral da época foi muito criticado por autores conservadores que agora reclamavam da falta de religião na vida pública. Ainda assim, os políticos de direita se mostraram incapazes de reverter a situação e acabaram aceitando como inevitável.
As mudanças culturais ao longo dos séculos mostram que não existiu realmente uma única moralidade tradicional, mas vários padrões oscilantes durante o tempo. As tendencias recentes das últimas décadas são só mais bem conhecidas e debatidas, mas não parecem destoar do que sempre ocorreu com a moralidade, em determinados momentos mais rígida e em outros mais permissiva.