Seguindo o hipotético fio da história natural, por meio de fogos-fátuos, erupções vulcânicas e outros incêndios espontâneos foi obviamente possível termos conhecido o fogo bem antes de chegarmos a manejá-lo. Assim como é provável ter-se imaginado o sol como a fonte divina da qual ele emanava, que o calor ou as fagulhas entre duas pedras o invocavam, e até mesmo que as estrelas cadentes ou os vaga-lumes lhe eram partículas flutuantes salpicando a escuridão. Antes do domínio das chamas foi necessário reprimir o medo de se queimar; saber que se podia coletar e transportar poções delas, que o fogo se disseminava como que magicamente pelo contato sem se diminuir, e que o gelo ou as trevas eram-lhe espécies de avessos.

Assim deve ter sido até o augusto dia em que, em vez de suscitar o escândalo dos atos de magia, sem percebermos que o havíamos desmistificado passamos a acendê-lo com um rito de gravetos giratórios entre persistentes e doloridas mãos treinadas ou na apneia de soprar na palha débeis centelhas geradas pelo choque entre pedregulhos. De deidade menor ou artifício demoníaco, sua familiaridade o convertia em uma espécie de artefato. Habituados ao fogo, abandonamos o culto a seu antigo nume dadivoso e ameaçador.

A mitologia não deixa de ser uma espécie sacralizada de literatura, e esta, por sua vez, em alguma medida, não seria mais que um acumulado de narrativas tentando entender os dilemas cosmológicos em que estamos inseridos. Assim, o antigo mito de Prometeu, o titã que apiedado da condição humana desprovida na natureza entrega-nos o fogo, nos remete ao pressuposto de que, por trás da prosa, o fogo foi concebido como algo que nos transcende, um princípio vital sem o qual nosso gênero seria inviável. Ademais, o fogo expandiu o tempo e o espaço, porque multiplicou nossa dieta e nos permitiu avançar noite adentro.

Aplacado o espanto causado pela ignição, o fogo não seria então mais que um fenômeno trivial entre tantos, como a chuva, a gravidez, a morte ou os amanheceres. Ao longo do tempo ele confundiu-se com a indústria e com os diversificados emblemas da vida e da ficção humanas, do “fiat lux” ao armagedom, nos ritos religiosos e simpáticos, desde a guerra ao rotineiro fumo, às mulas-sem-cabeça, cativo sob as lareiras, alegórico das paixões, na queima interna dos combustíveis nos veículos cotidianos, nos fornos das fábricas e nas caçarolas das receitas culinárias, no ardente estabelecimento do Inferno até as faíscas dos curtos-circuitos elétricos. Com o avanço da técnica e sobretudo da ciência, o fogo tornou-se fulgor ou combustão, ou seja, deixou de ser algo em si, mas o produto de reações químicas, um estado físico da matéria, uma propriedade pertinente aos elementos que a possuem em maior ou menor grau.

Porque também imprescindíveis, pode-se ponderar que a mesma parábola de Prometeu poderia se aplicar a qualquer dos elementos que então configuravam o mundo: a terra, a água, o ar1. Mas estes como que já estariam dados extensivamente no conjunto da paisagem intramundana. Ao passo que o fogo, a meio caminho entre o físico e o intangível, parecia preexistir em alguma outra dimensão antes de se manifestar na realidade; o único dentre aqueles ingredientes primordiais que precisaria que nós o reproduzíssemos, e de uma aprendizagem, de uma faculdade a qual somente aos humanos seria dado cumprir. O que assinalava sua singularidade enquanto algo ontológico embora não fosse imanente ao homem, a quem o fogo teria sido outorgado.

E isso contraria o velho anseio por encontrarmos em algum atributo intrínseco nosso, em um traço ético-psicológico mais elevado, o ponto de inflexão que nos teria diferenciado dos outros seres, como a capacidade de volição, de subjetividade simbólica ou de animismo, por exemplo. Ou seja, a característica unívoca que nos teria definido enquanto seres humanos poderia até ser encontrada em nós mesmos, mas sua possibilidade dependeu de algo externo, material, e que, assim sendo, nos remetia a algo além, ao regalo dessa primeira dádiva: o fogo.

Por volta da década de 1960, a despeito das falsas premissas que o levaram a pensar que se tratara de uma questão de alianças2, Lévi-Strauss acertadamente divulgou que a proibição do incesto era o único padrão cultural comum a toda a espécie humana, nosso único traço universal. Penso que na esfera, digamos, socioeconômica, a utilização do fogo é quem assume esse marco de exclusividade ecumênica3 da qual, para o bem ou para o mal, os descendentes de hominídeos somos os únicos legatários.

Como na epistemologia de Kant, que se atém ao sujeito cognoscente, falamos em controle ou domínio como se essas aptidões preterissem as propriedades do fogo. Talvez por uma predisposição linguística que como que molda nosso pensamento, os verbos assumem uma preponderância nas orações, o que nem sempre se dá na realidade, a qual se apresenta como um todo que tentamos apassivar e decompor. Assim, em nosso raciocínio, o ato de conhecer ou dominar algo oblitera este mesmo algo, hipostasia em substância o que na verdade é uma relação.

Descrentes do acaso, antigos teósofos postularam que, ao se manifestar, toda contingência torna-se uma predestinação necessária. Em grande medida, o fogo ilustra essa doutrina, já que no fundo seu fenômeno é mais intrigante que o uso utilitário que fazemos de sua manifestação, e porque embora eventual ou aleatório a princípio, adquiriu uma função da qual nossa civilização não só não pode abrir mão, mas que se constitui em uma essência dela.

Consta que alguns pitagóricos não consideravam o 1 como um número, mas apenas uma espécie de índice que acrescentado ao número dois e aos demais daí em diante compunha os algarismos. O fogo representa essa noção se negarmos que se tratava de uma tecnologia avant la lettre. Tendemos a pensar que a palavra tecnologia refere-se unicamente a dispositivos cibernéticos, a velocidades supersônicas, a satélites artificiais, enfim. Mas a domesticação de animais, o aproveitamento do sílex, a poda e a castração, a mó a alavanca e o gnômon, a monogamia, o arado, o anzol e o regadio, o onanismo, o tracejado das constelações, a sofística, a comensalidade ou o cozimento dos alimentos e da argila constituíram tecnologias resultantes de somas acumulativas cujo unidade somatória, como o número 1 pitagórico, não foi senão centelhas de fogo.

Contudo, há o outro lado da moeda, o de que seu advento teria catalisado nossa marcha rumo à autodestruição. Suscita aquela proverbial sentença segundo a qual tudo carrega em si o germe de sua própria dissolução. Neste sentido, vem a calhar o caso que bem poderia figurar em algum apanhado de mitologias aborígenes setentrionais, o do sujeito ancestral a quem assombravam as silhuetas que as fogueiras projetavam no fundo frio de sua maloca ao penetrarem em seus sonhos. Os pesadelos cessavam sempre que o despertava o susto da previsão de que algo aterrador estava prestes a aparecer por trás das labaredas. Consultados, os anciãos o advertiram de que devia esconjurar sua fobia e sua obsessão pelo fogo, as quais evocavam o lado funesto das sombras.

O tormento perdurou, até que uma noite o atormentado encorajou-se a manter-se adormecido para confrontar o pesadelo. E o que se passou no sonho foi que, para não se deparar com a pressentida imagem atroz, o fogo cresceu atendendo a suas preces até aniquilar as sombras sinuosas que invadiam sua tenda gelada. Logo em seguida, porém, despertaram-no o calor e a fumaça fatais de sua maloca ardendo em brasas. Sobreviveu apenas o bastante para contar aos que o socorreram sua visão onírica.

Um dos bruxos da aldeia arvorou-se ter dado com a miragem que o morto pressentira e que havia logrado evitar dentro do sonho. O adivinho interpretou-a como um presságio o qual, ao longo das gerações, seria incorporado aos mitos escatológicos do seu povo: munidos do fogo, os homens venceriam a primitiva batalha que desde épocas imemoriais travávamos contra as trevas. Mas ao cabo, sem sabermos o que fazer ou perdendo o controle do imenso poder com que o fogo nos havia beneficiado, este deflagraria o cataclismo incendiário que ao final nos fulminaria a todos.

Notas

1 Era comum também a proposição de um quinto elemento, como a madeira e o metal, ou, mais subjetivamente, o éter.
2 Provavelmente inspirado na teoria da reciprocidade de Marcel Mauss (Ensaio Sobre a Dádiva, 1925), Lévi-Strauss concluiu que os homens (famílias) permutavam mulheres em troca de alianças. E mais verossímil, porém, que essa característica humana global se deva na verdade à teratogênese derivada dos matrimônios entre consanguíneos, malefício genético conhecido mesmo por grupos pré-históricos.
3 Os sacrifícios humanos, durante séculos de séculos, também foram uma universalidade na cultura humana. Consta que os hebreus foram os primeiros a extingui-lo em seus costumes religiosos, substituindo a vítima humana por um cordeiro. Mesmo na “civilizada” Roma Antiga, os sacrifícios humanos só seriam proibidos com um decreto do senado datado do ano de 99 a. C.