A ideia de que o mundo é dividido entre sagrado e profano é a premissa de toda religião – ou ao menos deveria ser. Segundo esta cosmovisão, a realidade última não poderia, de maneira nenhuma, se confundir com a realidade comum; a realidade sagrada carregaria sempre este aspecto de elevação e revelação ao homem de um ser verdadeiro: um deus. Essa revelação não teria outro efeito senão gerar, no homem, um desejo de participar daquela existência. É como se, durante toda a sua vida, ele estivesse cego, como se tivesse achado um oásis após longas andanças no deserto.

Esse é o princípio motor de toda crença religiosa que tem seu berço na antiguidade. Não era possível conceber o mundo sem essa dualidade, o mundo só é porque o sagrado o justifica. Não haveria existência alguma sem um ser que transbordasse seu poder através da criação de tudo. Parecia claro que o mundo profano era frágil, a noite se sobrepõe ao dia, pessoas morrem, estações passam: algo superior devia sustentar toda essa realidade, essa sustentação era o próprio ciclo. Todo mito marcava uma data, dava a razão de ser dos ciclos eternos e, assim, era desejo do homem se sobrepor à fragilidade do mundo profano e participar dessa eternidade. E esse mesmo é o fim dos ritos: elevar o homem ao sagrado.

Mas isso não pode ser visto, de maneira psicologista, como “fruto da imaginação primitiva”. Não era coisa decidida pelo homem, em verdade, em muitos casos, ele desejava que fosse diferente, temia-se, honestamente, muitos deuses. Às vezes, sacrifícios apenas ocorriam para acalmar os nervos de um deus vingativo, que, por alguma razão, foi profanado por um membro da tribo. Mas não vim falar das causas específicas dessa forma de experienciar o mundo; vim falar sobre o problema da conciliação entre a modernidade e essa cosmovisão – que é, sempre, uma herança religiosa.

Vale dizer que essa dualidade – sagrado e profano – não é uma doutrina sistematizada, não é uma escola de pensamento; mas sim a maneira pela qual as sociedades tradicionais percebiam o mundo. Não se trata de um estudo das crenças humanas, mas do comportamento humano diante das crenças, como propôs Mircea Eliade, em “O Sagrado e o Profano”.

Se, para as sociedades tradicionais, o mundo era heterogêneo, para as sociedades modernas o mundo é homogêneo. O homem não religioso não vê nada no mundo que não seja acidente, isto é, algo que poderia ser ou não ser. A realidade atual seria um amontoado de acontecimentos históricos que poderiam não ter ocorrido. E se toda história é acidental, não existem momentos nem locais substancialmente diferentes. Em verdade, o homem não religioso dirá que todo momento é único: e aí está a homogeneidade. Se tudo é único, tudo é igualmente único, não há espaço para o sagrado. O tempo e o espaço não passam de medidas físicas.

Essa concepção de mundo é um absurdo para o judaísmo, por exemplo. A fundação do mundo seria Jerusalém, e todo judeu pertenceria àquela terra, mesmo se nascido em outro local – é que o local sagrado é, por excelência, o “centro do mundo”, o único local possível para se existir verdadeiramente, o resto é profano. Desse modo, os tempos mosaicos seriam também únicos, mas num sentido diferente. Não é único pelos seus acidentes (lugar, tempo, contexto), é único pela sua “substância”, foram os tempos em que a presença divina, a teofania, era forte. Todos os outros tempos são iguais, são meros intervalos entre uma presença divina e outra.

O mundo moderno, por outro lado, percebe tudo de maneira homogênea, tudo é profano, não há sagrado propriamente. Podem até haver ligações emocionais de um homem a determinado local: o dia em que se casou, o dia em que tal pessoa morreu, o dia e local em que teve o primeiro emprego etc. Mas tudo isso não é sagrado, ele sabe que é profano, mas em seu mundo individualizado, ele admite uma importância maior da coisa. Essa experiência, é, no máximo, uma sombra dessa cosmovisão dual da realidade.

Se, por um lado, o homem tradicional sempre busca retornar a um estado primitivo, que seria o estado perfeito, anterior à criação, carregado de uma nostalgia de um paraíso perdido; por outro, o homem moderno olha para frente, não há retorno, há apenas progresso. Ao homem religioso, as teofanias marcam períodos que justificam a existência do mundo; relembrar essas datas e praticar os ritos próprios é, então, realimentar o motor do mundo. Se o sagrado é o ser verdadeiro, o profano é o não ser. Negligenciando os ritos e as datas, negligencia-se o mundo, por assim dizer.

Mas, se para o homem moderno não há sagrado que justifique a existência da realidade profana, não há, portanto, o que lembrar. Toda lembrança é, no máximo, útil. Lembra-se a origem da língua, da nação, do Estado, mas sempre sem seu aspecto histórico, isto é, em seu aspecto contingente: sucessões acidentais atrás de sucessões acidentais. Não se trata mais de buscar o oásis perdido no deserto, aquele oásis que um dia foi visto, que foi testemunhado nos mitos; trata-se de construir um oásis e acabar, o homem mesmo, com o deserto. Esse é o progresso.

E se o fim da sociedade é a evolução indefinida, o homem moderno, sem dificuldade, define as religiões como um meio antigo para a ordem. Mas essa concepção ignora a natureza da coisa, explicarei.

Toda religião possui três bases: a ética, a intelectual e a devocional. A base ética são as ordenações práticas, os conselhos para que se viva da melhor maneira, da maneira mais sagrada. A base intelectual seria, por assim dizer, a teologia, o estudo, o pensar. A base devocional seria o culto e os ritos. Para o homem religioso, a base devocional é a origem de tudo, isto é, não se presta culto a um deus porque ele é o “mais certo”, mas porque dele transborda todo o poder, a ética e a doutrina são as consequências mais rasas disso. Ao homem moderno, a coisa é diferente, só uma coisa poderia justificar a religião: a ética.

Ora, se a religião tinha o fim de possibilitar a ordem entre as pessoas, abstraindo-se a ética, já não é necessário a doutrina e a devoção. É como se todo sistema religioso tivesse suas devoções e doutrinas por causas acidentais: tempo, contexto, governo etc. Nesse sentido, a religião seria como uma fruta, a ética seria o suco. As boas ações se justificariam por si mesmas, simplesmente porque elas são úteis. E, num passe de mágica, toda religião está dispensada, basta agir da melhor maneira. Mas há um profundo engano nesse pensamento moderno. O fim dos mitos não é ser útil, em verdade, eles são o fim em si. Não se presta culto a um deus por uma causa segunda, o próprio sagrado é a causa primeira da vida e, logo, do culto. Não há que se falar em “utilidade”, lembremos que o homem tradicional não raciocina naquilo que mais lhe aprouver, ele raciocina em cima da seguinte base: é sagrado, ou é profano.

Com o advento dos Estados laicos, a ética, mirada em si mesma, se declarou acima de toda doutrina e devoção. As leis se sobrepuseram à religião. A tolerância laica não tolera o poder necessário que uma comunidade religiosa precisa para viver sob seu próprio sistema. Ora, esse sistema é regido pelo sagrado, o homem moderno não suporta, para ele é loucura, primitivismo, fingimento, fanatismo. Não há teofania, não é tempos distintos, daí do porquê ser sempre objetivo da modernidade dessacralizar a religião. O mundo religioso deve ser profano tanto quanto o mundo do homem não religioso.

Por consequência, os dogmas e os ritos devem ser abandonados, não há mais Eterno Retorno, pois não há mais realidade sagrada, há apenas progresso. A vida religiosa, aos olhos do homem moderno, deve ser tolerada apenas pelos seus aspectos acidentais: músicas, língua, comida, costumes etc. Esses aspectos acidentais são úteis, fazem um “cidadão” se sentir pertencido a algum lugar, é a sua origem histórica, mas não ontológica.

Nesse sentido, a religião já não carrega um corpo coletivo para um fim qualquer, mas serve a necessidades individuais de pertencimento. O único capaz de regular qualquer coletivo é o Deus-Estado. A religião se torna, então, um discurso vazio de autoajuda – já não há um deus a se temer, há apenas o Estado, pois as leis divinas não se aplicam à realidade concreta. Só se aceita, na modernidade, deuses mansos, amorosos, tímidos e frágeis.

A realidade sagrada, que era mantida pelos ritos e festas, foi substituída pelo progresso. Aí está a origem de tantas linhas religiosas “reformistas”. É como se o sagrado estivesse atrasado em relação ao progresso, não há mais manutenção através dos ritos, logo, por necessidade, não há mais sagrado. O Eterno Retorno foi substituído pelo Eterno progresso. Se, para o cristão tradicional, todo mandamento em relação ao comportamento sexual é um preceito sagrado e, portanto, real; para o cristão moderno, se vê nisso apenas um acidente, não passa de um costume de época. Logo, estando-se em outra época, há outro “sagrado”. Sua religião é, portanto, vazia de sagrado, é uma declaração a favor do profano.

O mundo tornou-se homogêneo, e todo sistema religioso que diz o contrário está incorrendo em grave pecado contra o Estado laico.