Da Flip 2023, eu trago reflexões de autoras a respeito da percepção política do corpo da mulher, a considerar que ele tem sido tratado como bem público por guardar o berço geracional da espécie humana. Afinal, entre os comentários públicos sobre os corpos, os homens passam ilesos e as mulheres não. Dessa forma, sendo mulher, falar sobre o corpo é um ato político.
Eu me interesso por pensar a educação das adolescentes a respeito do seu próprio corpo no sentido de se manterem seguras o suficiente para que os julgamentos que as cercam, e muitas vezes são criados por elas mesmas, não confunda a sua própria intuição e inteligência sobre si mesma. Tanto julgamento pode provocar sentimentos de inadequação, insegurança, necessidade de aprovação, entre outros, o que as torna vulneráveis nas relações.
Para isso, é importante reconhecer que as meninas e as mulheres têm sido educadas, de forma implícita ou explícita, a cuidar de outras pessoas. Igualmente importante é que elas sejam educadas ao autocuidado.
As mulheres têm sido encarregadas de gerar, nutrir e educar a próxima geração. Mas, acho necessário que se pergunte: houve algum acordo social neste sentido? A justificativa estaria pautada no fato incontornável de que apenas a mulher pode gerar. No entanto, os exercícios do cuidado que sucedem a gestação poderiam ser partilhados, e ainda podem. Com isso, eu assumo que questiono a expressão “instinto materno” como qualidade inerente à mulher e acredito que todes podem se beneficiar do cuidado com outras pessoas, assim como beneficiar outras pessoas que se sentem sobrecarregadas com o exercício do cuidado.
Silvia Feredici relacionou a divisão sexual do trabalho com o surgimento do capitalismo em Calibã e a bruxa, publicado há quase vinte anos. Eu poderia citar outras autoras que são referência para se pensar o feminismo hoje, mas a minha observação nas ruas, nas casas e nas instituições é suficiente para confirmar que as mulheres são encarregadas do exercício do cuidado, como uma profissional mal remunerada ou uma pessoa não remunerada.
Intuímos que o cuidado é a linguagem do amor, que quando amamos uma pessoa queremos protegê-la. Afinal, o laço dos afetos gera a satisfação de que não estamos sozinhas e criar vínculos dá sentido as nossas vidas. Basta lembrar quando estivemos vulneráveis e nos sentimos protegidas por alguém, ou quando estivemos a cuidar de quem está vulnerável. Então, passamos a amar a outra pessoa, mas principalmente aquele espaço, que é a relação construída que fortalece quem nós somos. Todas queremos nos sentir necessárias, em certa medida. E podemos assumir que o fluxo de doação parece natural em nossas vidas.
Na evolução da espécie humana, a criação de laços faz parte do sucesso reprodutivo. Não é preciso ler muitos livros para saber: nascemos frágeis e indefesas e permanecemos dependente de cuidados por longos anos. Assim são os mamíferos. Mas, nós humanas, somos mamíferas imersas na linguagem. Dessa forma, além de ensinar os bebês e crianças a andar, comer, se proteger e se limpar, também ensinamos a falar, a escrever e, progressivamente, a falar e escrever melhor além de entender conteúdos, valores, informações e códigos de conduta em uma sociedade complexa a nível simbólico e inerentemente violenta nas relações estabelecidas. Na sociedade complexa e violenta em que vivemos, são longos anos de cuidado e, junto com o cuidado, a educação.
Ao considerar a necessidade de educação em uma sociedade complexa, a cultura em que vivemos hoje não motiva que a janela de fertilidade coincida com a janela biológica. Afinal, uma adolescente, após a primeira menstruação, está biologicamente pronta para gerar. No entanto, na nossa cultura, isso não é o suficiente porque a mulher que gesta também educa e a adolescente ainda não concluiu a sua própria educação e não poderia educar outro ser. Além disso, a adolescente pode não conseguir lidar com as demandas da maternidade; ela pode adoecer e abandonar os filhos. Terceiro, mas não menos importante, casos de gravidez na adolescência podem estar relacionados a estupro de vulnerável, classificados desta forma quando ocorre antes dos quatorze anos.
Os direitos reprodutivos, publicados na Conferência de Cairo, em 1994, se referem aos direitos de as pessoas decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas. Associado a isso, o direito a informações, meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos.
Então, nas escolas ensinamos modos de prevenir a gravidez, mas não é possível dizer que asseguramos que os direitos reprodutivos sejam respeitados apenas nesta ação. Primeiro, pelas limitações estruturais: as turmas grandes não garantem às adolescentes uma atenção individualizada. Além disso, não se educa alguém listando apenas os métodos contraceptivos disponíveis. A educação de qualquer conteúdo nas escolas não deve prescindir da educação emocional que, quando associada ao assunto gravidez, lida com muitos conteúdos psíquicos e mentais.
É comum que a mulher engravide sem querer e vivencie a maternidade com responsabilidade e alegria. Há diversos caminhos e incertezas na vida, incluindo as gratas surpresas. Mas há também casos de adoecimento das mães e abandono de filhos. Então, devemos ter a responsabilidade de amparar as adolescentes de forma que elas saibam sobre si mesmas. Não que elas saibam inteiramente sobre si mesmas porque nem mesmo nós sabemos, mas que elas reconheçam as suas necessidades. Para que os seus corpos sejam sentidos e significados como parte delas e não das pessoas que opinam e que procuram determinar os modos de usar o corpo da mulher. A educação da adolescente deve ser sobre reconhecer as suas necessidades e assumir a agência pelas suas vontades, ao mesmo tempo que se respeite os pactos sociais.
As comparações que fazemos com o amadurecimento da adolescente não ajudam a compreender a complexidade e a diversidade do processo de crescimento. A metáfora do desabrochar de uma flor ou de que a menina se torna mulher quando se torna mãe (e quando ela menstrua se torna mocinha) são algumas formas comuns de se referir a esse crescimento. No entanto, cada experiência de vida é única.
O convite ao autocuidado é para que a adolescente consiga saborear o processo de amadurecimento com delicadeza, atenção e honestidade. Como cuidado é a linguagem do amor, o autocuidado seria o amor-próprio, algo que nos enganamos quando pensamos que será alcançado. É mais honesto falar às adolescentes que o amor-próprio é um sentimento que cultivamos, como uma semente que regamos todos os dias, preparamos o solo para que ela cresça e floresça. É sobre estarmos atentas a cada germinação, flor e fruto. É um processo que não finda e é próprio de estar viva. Ser menos suscetível aos julgamentos de outras pessoas é parte da técnica de cultivo. Uma jardineira é confiante na sua observação, na sua relação com a terra. Como eu acredito que deva ser a educação emocional de uma adolescente: por analogia, a arte de cuidar do seu jardim.